A Pneumónica DE 1918 em Portugal Continental

Estudo Socioeconómico e Epidemiológico

com particular análise do concelho de leiria *

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Oriunda da Ásia, dos EUA ou da própria Europa (Brest ou Bordéus), a gripe de 1918, designada entre nós por «pneumónica», resultou da acção de uma estirpe de Mixovírus A, altamente patogénica, a qual, associada a gravíssimas complicações respiratórias bacterianas secundárias, provocou cerca de 20.000.000 de mortos em todo o Mundo.

De acordo com os cálculos por nós efectuados a partir dos dados estatísticos do Movimento Fisiológico da População Portuguesa de 1918, a gripe, só em Portugal Continental, faria 60.474 mortos.

Em medicina, tal como nas demais ciências, a necessidade de aprender e reflectir sobre as lições do passado constitui uma norma, senão mesmo uma exigência, fundamental à definição das estratégias a aplicar no presente e no futuro.

Oriunda da Ásia, segundo alguns autores, originária dos EUA ou da própria Europa, segundo outros (Brest ou Bordéus), a gripe de 1918, designada entre nós por «pneumónica», resultou da acção de uma estirpe de Mixovírus A, altamente patogénica, a qual, associada a gravíssimas complicações respiratórias bacterianas secundárias, provocou cerca de 20.000.000 de mortos em todo o Mundo.

Grassando em Espanha desde Maio de 1918, a gripe pneumónica detecta-se já em Portugal em finais desse mês. Em Leiria, o primeiro caso de morte registado, devido à gripe, data de 4 de Junho de 1918. Da fronteira terá irradiado para o litoral a partir de dois pólos distintos: um, situado mais ao Centro, envolvendo concelhos raianos dos distritos da Guarda e Castelo Branco e o outro, mais a Sul, englobando concelhos dos distritos de Beja e Évora. Progredindo rumo ao litoral, a gripe, na sua primeira onda epidémica, entre finais de Maio e meados de Julho, rapidamente atingiria os grandes centros urbanos de Lisboa e Porto. A partir destas áreas metropolitanas, na segunda e última vaga epidémica, de início de Agosto a finais de Novembro de 1918, estender-se-ia a todo o território continental, provocando uma autêntica razia demográfica, com graves repercussões sociais e económicas.

De acordo com os cálculos por nós efectuados a partir dos dados estatísticos do Movimento Fisiológico da População Portuguesa de 1918, a gripe, só em Portugal Continental, faria 60.474 mortos.

Embora a maior mortalidade epidémica se tenha concentrado em Benavente (onde 7 em cada 100 pessoas morreram de gripe) e na Covilhã, numa tabela de 29 concelhos portugueses continentais (cuja sede é uma cidade), assuma a primeira posição com 2,35% de mortes, Leiria, em segundo lugar da mesma, com uma taxa de mortalidade igual a 1,81%, geograficamente mais acessível a este trabalho de investigação, viria a ser a nossa opção de estudo.

Compreender a gripe de 1918, as suas causas e consequências socioeconómicas e epidemiológicas, através de uma análise, não só, «macrocósmica», alargada a todo o continente Português, como numa óptica mais circunscrita, «microcósmica», centrada no concelho de Leiria, incluindo a sua envolvente distrital, constituiu o principal objectivo desta obra.

Antes de nos concentrarmos na análise epidemiológica da gripe, importa reflectirmos sobre as condições socioeconómicas da sociedade portuguesa e, em particular leiriense. Tomámos como elementos caracterizadores dessa realidade o custo de vida, a estrutura da fanulia, o orçamento familiar e o poder de compra, a alimentação e o índice higiénico e sanitário da população.

Mergulhado numa crise económica cujas raízes tocam o início do século, Portugal apresenta em 1918 um custo de vida bastante elevado, cujo índice (292,7) praticamente triplicou em relação a 1914 (100).

As famílias leirienses, compostas por 3 ou 4 elementos, são tendencialmente mais pequenas do que as famílias lisboetas, todavia, não seria devido a este aparente desafogo residencial que a qualidade de vida higiénica e sanitária da sua população iria ser melhor. Leira, em 1918, apresentava-se «porta aberta» a todas as doenças e epidemias. Dotadas de orçamentos semanais baixíssimos, as famílias pobres operárias ou rurais, infelizmente em grande número, sobreviviam com grandes dificuldades e os permanentes saldos negativos são a prova disso. Não podendo cortar nas despesas de habitação, de vestuário, de iluminação e combustível, os gastos com a alimentação constituíam a última prioridade. De acordo com os estudos efectuados por Bento Carqueja e Simão de Martel e com as nossas próprias investigações, as rações diárias individuais, entre famílias operárias ou rurais, são efectivamente pouco diversificadas e hipocalóricas, com todos os riscos que daí advêm. A pobreza destas dietas contrasta, curiosamente, com os elevados níveis de produção agrícola atingidos em 1916, 1917 e 1918 pelo distrito de Leiria, que se coloca assim entre os 8 ou 9 distritos mais produtivos do País.

Na ausência de Censos para 1918, todas as taxas consideradas importantes ao estudo da gripe foram por nós calculadas com base na média obtida entre as taxas relativas aos efectivos populacionais de 1911 e de 1920. Tratada a informação estatística de natureza Censitária, Fisiológica e Demográfica, colhida nos registos do INE e nos Arquivos do Concelho de Leiria, estabelecemos os vários universos a investigar.

Observando a distribuição de mortalidade gripal em 1918 e avaliando a partir desta informação as duas trajectórias do Mixovírus, desde a sua entrada em Portugal, parece-nos, claramente, que a gripe convergiu para uma alargada área localizada na bacia do Tejo, entre Lisboa e Santarém, onde veio a desencadear grande mortalidade. Os concelhos de Benavente, Azambuja, Vila Franca de Xira e Salvaterra, entre outros, situados nesta suposta zona de convergência, apresentam, realmente, taxas de mortalidade por gripe elevadíssimas, respectivamente, iguais a 7%, 4%, 3,2% e 2,9%.

A distribuição da mortalidade epidémica ao longo do País, permite-nos ainda tecer duas outras conclusões: 1ª - Todos os concelhos da região Norte, com excepção de Melgaço, onde a mortalidade epidémica em 1918 atingiu os 2,2%, são, de um modo geral, mais poupados pela doença; 2ª - O facto de as taxas de mortalidade gripal mais elevadas, em 1918, não se localizarem entre os 29 concelhos portugueses continentais de maior expressão demográfica, económica e social, com excepção da Covilhã, sugere-nos que este fenómeno possa ter estado relacionado, entre outros factores, com a capacidade de resposta e o nível de eficácia da assistência médica e sanitária prestada aos epidemiados. Parece-nos, pois, que a mortalidade por gripe se distribuiu na razão inversa do grau de qualidade e eficácia dos recursos médicos, os quais, nesta época, deveriam deixar muito a desejar fora das Comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra.

Para um total de 60.474 vítimas de gripe em Portugal Continental, equivalente a uma mortalidade de 1,08%, só o distrito de Leiria contribuiu com 3.175 óbitos.

Entre os 16 municípios do mesmo distrito, o Concelho de Leiria, com 978 mortos por gripe, em 1918, deteve a maior taxa de mortalidade epidémica – 1,81 %, com especial incidência no grupo etário dos 30-39 anos de idade (1,93%). O segundo maior alvo etário da mortalidade gripal neste concelho situou-se no grupo dos O (zero)-11 meses de idade, com um taxa igual a 1,54%. Relativamente à distribuição de mortalidade por sexo, as mulheres com idades abaixo dos 30 anos foram, predominantemente, as maiores vítimas da gripe. De notar, no entanto, que esta distribuição etária concelhia e por sexo não deve ser encarada como paradigmática do resto do País. As taxas verificadas em Portugal Continental, considerado como unidade global, essas sim, deverão ser tomadas como indicadores da realidade comum a todo o território.

Definidos os respectivos factores associados à gripe – densidade demográfica, mortalidade infantil, imunidade em anos precedentes, índices de doença desconhecida, analfabetismo, enterite e tuberculose, litoralidade e interioridade – formulámos várias hipóteses que procurámos demonstrar recorrendo, sempre que possível, a estudos de Correlação Estatística e de Análise Factorial das Correspondências (AFC):

A gripe ocorreu ou não em locais com maior densidade demográfica? A mortalidade infantil acompanhou ou não de perto a mortalidade gripal? Haverá razões para crer que os locais mais atingidos pela gripe em 1916 e 1917 terão sido mais poupados pela pneumónica de 1918 e vice-versa? A gripe foi ou não influenciada por doença desconhecida, analfabetismo, enterite e tuberculose? Haverá ou não alguma relação entre mortalidade epidémica e litoralidade ou interioridade?

Da investigação efectuada pudemos concluir o seguinte:

As altas densidades demográficas não determinam, necessariamente, taxas de mortalidade gripal elevadas, conforme ficou provado pelo valor negativo da correlação estabelecida entre estas variáveis (-0,38).

O nível sanitário, identificado pelas taxas de mortalidade infantil, e a mortalidade gripal em 1918, em todos os distritos portugueses continentais, não parecem relacionar-se minimamente, conforme atesta o valor negativo da correlação entre as duas variáveis (-0,29).

Aplicada a AFC às taxas de mortalidade gripal de 1916, 1917 e 1918 correspondentes aos 269 concelhos continentais, não se verificou qualquer oposição entre estas variáveis, o que nos leva a concluir que a teoria da imunidade adquirida (em anos precedentes) não tem qualquer base de sustentação.

A mortalidade gripal, em 1918, nos diversos concelhos portugueses continentais, distribuiu-se na razão inversa da mortalidade por doença desconhecida. Nos locais onde a mortalidade por doença desconhecida foi baixa, a mortalidade por gripe revelou-se, tendencialmente, alta e vice-versa. Mas se desta constante oposição, aparentemente, não se pôde inferir nada de significativo, pudemos, pelo menos, concluir que os maiores índices de mortalidade por gripe e por doença desconhecida não se localizaram, de facto, nos concelhos de maior expressão urbana. Fora das comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra, o diagnóstico de causa de morte, resultante de uma prática médico-forense precisa e eficiente, e a possibilidade de redução da mortalidade por gripe, corolário de uma medicina com qualidade e eficácia, parecem ter sido, em 1918, metas difíceis de atingir. A Reforma dos Serviços de Saúde e, sobretudo, dos serviços médico-forenses, datada de Dezembro de 1918, atesta, claramente, o estado da medicina portuguesa dessa época.

Depois de seleccionar os concelhos portugueses com taxas de mortalidade por tuberculose superiores a 0,20%, procurámos correlacionar esses valores com as respectivas taxas de mortalidade por doença desconhecida e gripe. Os resultados foram negativos.

Numa primeira fase de estudo, da AFC aplicada aos diversos universos a tratar (concelhos continentais e do Distrito de Leiria, distritos portugueses e freguesias do Concelho Leiriense) para 1916, 1917 e 1918, pôde concluir-se que a mortalidade gripal ocorreu independentemente da influência de qualquer factor.

Quanto à distribuição dos valores mais elevados de mortalidade gripal nos concelhos portugueses continentais, em 1918, em termos de litoralidade ou interioridade (central ou raiana), a análise estatística viria comprovar-nos que não se verificaram quaisquer tendências nesse domínio. Contudo, numa apreciação apriorística, baseada na distribuição das maiores taxas de mortalidade epidémica (≥2%), diríamos que as taxas mais altas ocorreram, predominantemente, em concelhos do litoral e interior-centro.

Finalmente, após a elaboração de duas tabelas com dados respeitantes à distribuição de mortalidades por gripe, tuberculose e enterite, relativas a grupo etário e sexo, em Portugal Continental (considerado em termos globais), com base nos efectivos de 1920, sujeitámos todos os dados a AFC. Pudemos provar que algumas das nossas hipóteses ou convicções têm fundamento científico: a mortalidade gripal foi, seguramente, influenciada pela enterite e pela tuberculose.

Da leitura de duas componentes principais desta AFC pudemos concluir que as taxas de mortalidade por gripe e tuberculose aparecem sempre associadas, com especial predominância nos grupos etários dos 20-29, 30-39,40-49 e 50-59 anos.

Reflectindo sobre duas outras componentes principais verificámos que, independentemente do sexo, as taxas elevadas de enterite se associam sempre aos grupos etários dos 0-11 meses (5,81%) e 12-23 meses (3,75%). Ora, é exactamente nesta faixa etária que vamos encontrar a maior taxa de mortalidade gripal em 1918: no grupo dos 12-23 meses de idade ― 2,20%.

Os indivíduos com idades entre os 30-39 anos constituíram o segundo grupo etário mais atingido pela gripe (1,67%), precisamente aquele onde se concentrou a segunda maior taxa de tuberculose (0,24%). O grupo etário dos 20-29 anos deteve a taxa mais elevada de mortalidade por tuberculose (0,27%). Mas se para o segundo grupo etário, a que se associa frequentemente a tuberculose, a tendência para uma grande mortalidade epidémica parece não gerar dúvidas, no que toca ao grupo dos 12-23 meses, é imperativo tecer algumas considerações:

Com o aleitamento reduzido ou mesmo suprimido, quando atingiam esta idade, estas crianças deixavam de poder contar com os importantes factores biológicos existentes no leite da mãe, ficando por isso mesmo mais susceptíveis a toda a casta de doenças infecciosas. A morbilidade e a mortalidade subiam, assim, em flecha neste grupo etário. Minados por enterites, que aqui assumem índices altíssimos, facilmente sucumbiam quando atingidos pela gripe.

Mas as consequências da gripe não podem, nem devem ser apenas perspectivadas em termos epidemiológicos. A compreensão deste fenómeno, implica também conhecermos algumas das repercussões sociológicas da epidemia.

Atingindo com grande impacto as faixas etárias adultas e activas, entre os 20-40 anos (especialmente mulheres abaixo dos 30 anos), a gripe teria, naturalmente, que agravar um pouco mais a situação económica e social dos portugueses. As consequências desta profunda crise, despoletada e exacerbada por factores de vária ordem, apesar do final da guerra e da extinção da gripe, iriam reflectir-se muito para além de 1918. Assim, enquanto os saldos fisiológicos populacionais só nos finais de 1919 viriam a aproximar-se dos de 1917, Portugal, em Maio de 1921, ocupava a terceira posição numa tabela de custo de vida constituída por 20 países, à frente da qual se colocavam a Finlândia e a Alemanha, respectivamente, no primeiro e no segundo lugares da mesma.

Face à lentidão e incapacidade do Estado em responder às enormes carências sanitárias verificadas durante o surto pandémico de gripe, as organizações humanitárias e a sociedade civil desenvolveram um serviço de apoio às vítimas e às respectivas famílias, cujos resultados foram de grande expressão no domínio médico assistencial. A Associação Protectora dos Hospitalizados Pobres, por exemplo, nascida deste espírito de solidariedade nacional, iria estender a sua acção filantrópica muito para além do período em que grassou a pneumónica. Em Leiria, a Comissão de Assistência às Vítimas da Epidemia, formada em 04 de Novembro de 1918, também ela teve um papel notável no apoio aos mais necessitados, órfãos e doentes pobres, distribuindo-lhes subsídios obtidos a partir de donativos, garantindo-lhes assim as condições mínimas de sobrevivência.

A nível mental e religioso, as populações, perante o cisma da morte próxima e inevitável gerado pela gripe durante a sua «negra» trajectória, assumiriam alguns comportamentos em tudo idênticos aos que caracterizaram as sociedades medievia e modernas durante as pestes. Buscando nos Céus o que na Terra e entre os homens parecia impossível, o fim da peste, as populações, por todo o País, congregavam-se em volta dos seus santos mais devotos. Entregues ao sacrifício da marcha e da oração, desfilavam durante a noite pelas ruas das suas localidades, entoando cânticos e apelos fervorosos, num claro "revivalismo medieval" que, nessa época e ainda hoje, parece fazer parte da consciência colectiva das comunidades.

Outros fenómenos de natureza psico-sociológica poderíamos relacionar com o temor da morte. Em Vila Real, por exemplo, a elevação do número de testamentos realizados em Outubro, o mês em que se regista a maior mortalidade epidémica, parece estar directamente associada ao fenómeno gripal. Em Leiria, pelo contrário, não se verificaram aumentos significativos em relação à média anual.

Como grande inovação no domínio terapêutico, foram nessa altura ensaiadas as vacinas polivalentes e os resultados foram tão promissores que ficariam de vez lançados os alicerces da imunobioterapia, hoje em dia usada na prevenção e cura das mais diversas patologias respiratórias de causa bacteriana. A acção destas vacinas é ainda hoje reconhecida com base, não em estudos de natureza experimental e estatística, subordinados a requisitos e parâmetros cientificamente estabelecidos, mas em resultados que se apoiam, fundamentalmente, em evidência clínica e terapêutica.

Perante as actuais limitações das vacinas antigripais, nem sempre eficazes e, de um modo geral, ainda pouco aconselhadas pela classe médica na faixa etária dos 12 aos 23 meses, devido às suas contra-indicações, enquanto a engenharia genética e a indústria farmacêutica não descobrem outros recursos, julgamos que, a par dos fundamentais cuidados higiénicos de natureza preventiva e dos recentes inibidores específicos de neuraminidase viral, a imunobioterapia, quando aplicada com critério e segurança, constitui mais uma alternativa curativa e profiláctica e, como no passado, pode vir a ser um importante reforço terapêutico, se um novo surto epidémico ou pandémico de gripe vier a declarar-se.

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* Autor: João José Cúcio Frada — Médico, Professor aposentado da Faculdade de Medicina de Lisboa

Resumo de:  Frada J. A gripe pneumónica em Portugal Continental - 1918. 1ª edição, Lisboa: Setecaminhos, 2005

Contacto do editor: ed.clinfontur0208@gmail.com

João Frada © Portal de Saúde Pública, 2007