Visão Actual e Histórica da Gripe A(h1n1)*

Recomendações e Medidas Preventivas

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A gripe “espanhola” ou influenza de 1918-19, designada entre nós por “pneumónica”, ficou a dever-se à acção de uma estirpe de Mixovírus Influenza A H1N1, altamente patogénica. O “impacto” desta gripe, nas suas repercussões directas e mais ou menos imediatas, expressas por queixas de febre alta, cefaleias (dores de cabeça) intensas, cansaço, fadiga, exaustão, congestão nasal e ocular, espirros consecutivos, odinofagia (dor de garganta e dificuldade de engolir), náuseas, vómitos e diarreia (sendo estas queixas digestivas mais raras), tosse catarral severa (pela produção intensa de muco), otalgias (dores de ouvidos), frequentemente associadas e seguidas a/de gravíssimas complicações respiratórias bacterianas secundárias (bronquites e pneumonias) provocadas por “hemophilos influenza”, estreptococos, estafilococos e, particularmente, por pneumococos, provocou cerca de 20 milhões de mortos em todo o Mundo. Se tivermos em conta o nº de baixas resultantes da 1ª Guerra Mundial (1914-18), 7 a 8 milhões de mortos, a mortalidade global desencadeada em todo o Mundo pela gripe “espanhola”, durante a sua trajectória pandémica com uma duração de pouco mais de um ano, podemos imaginar a terrível virulência e agressividade deste microrganismo, o vírus influenza A H1N1.

Alguns autores situam mesmo a mortalidade gripal de 1918-19 nos 30 a 40 milhões, mas não é fácil cifrar o número de vítimas, atendendo à insipiência da Estatística Demográfica na maior parte dos países dessa época.

Naturalmente, como sempre acontece, os organismos humanos não possuíam, então, como hoje, imunidade prévia contra um vírus como este que surgiu em 1918. Os vírus, enquanto entidades microbiológicas, nem sequer eram conhecidos naquela época, porque não havia condições tecnológicas disponíveis para a sua observação. Apenas a partir da descoberta e utilização adequada da microscopia electrónica iniciada com Zworkin, em 1930, viria a ser possível identificar a maior parte destes microrganismos patogénicos, incluindo, naturalmente, os agentes responsáveis pela gripe.

A questão que se levanta sobre a grande mortalidade atribuída ao vírus da gripe pandémica de 1918-19, não só tem a ver com a patogenicidade (capacidade de produzir doença com maior ou menor grau de gravidade) ou virulência própria do vírus H1N1, que irrompeu, nessa altura, muito provavelmente a partir de surto com origem/início no Sudeste Asiático, na China ou numa das regiões da então Indochina Francesa, como terá sido facilitada pelas precárias condições higiénico-sanitárias e alimentares em que grande parte da população mundial vivia, antes, durante e, naturalmente, após a 1ª Guerra Mundial. Esta tese não exclui a hipótese de ter havido um surto pandémico de gripe, determinado por simples mutação viral (drift), com origem em qualquer outro local do Globo, sempre possível no processo normal de evolução e adaptação eco ambiental destes microrganismos, ou então por hibridação viral (shift), mais rara. Este último fenómeno explica-se através de uma provável recombinação genética entre vírus de gripe animal (aves, em particular) e vírus de gripe humanos, podendo esses vírus resultantes, por sua vez, vir a contaminar porcos, animais que são “autênticos laboratórios biológicos” capazes de servir de fáceis rastilhos de contágio entre as populações rurais mais próximas desses focos epidémicos, despoletando-se, em seguida, uma autêntica “bola de neve” viral entre seres humanos, de graves proporções, epidémica ou pandémica). Esta hipótese, se já era considerada uma forte possibilidade para os investigadores da terceira década do século XX, debruçados sobre os aspectos etiopatogénicos (causas e mecanismos de instalação da doença) e epidemiológicos da gripe de 1918, ganhou hoje, no século XXI, muitos mais adeptos. Não está, contudo, provada essa origem ou relação, em definitivo. Lembremos, no entanto, que, de um modo idêntico ao que se verificou em 2009, em 1918, enquanto a população do Iowa, nos EUA, era flagelada pela gripe, determinada por um mixovírus A H1N1, noticiava-se pela mesma altura um surto epizoótico de gripe porcina, com elevadíssima morbilidade e mortalidade.1 Também a partir do EUA, de Fouston (Arkansas), se noticia o primeiro registo de mortalidade humana por gripe, na sequência de um surto epidémico que ali eclodiu, em Março de 1918.

Para compreendermos, contudo, o terrível impacto da gripe “espanhola”, influenza ou “pneumónica”, devemos ter em conta, ainda, que a população, em geral, não fazia ideia do que eram agentes patogénicos (vírus, bactérias, fungos ou parasitas) nem da importância que a assepsia (higiene, limpeza e lavagem de mãos, instrumentos e outros objectos de uso corrente) e a anti-sepsia (uso de desinfectantes, capazes de esterilizar microrganismos patogénicos) poderiam ter na prevenção das doenças infecciosas. Este nível de desconhecimento não era apenas comum à população iletrada, dessa época. Mesmo entre as classes intelectuais, estas noções sobre o perigo e as causas de infecto-contagiosidade eram conceitos um tanto ou quanto ficcionistas. Em 1918, alguns distintos membros da comunidade médica francesa e, em particular, o Dr. Roux, eminente clínico e investigador parisiense, conscientes de que a doença se propagava através do ar que se respira e que a transmissão viral era determinada, acima de tudo, pelo contacto com as partículas infectadas de Fludge (espirros, tosse, muco nasal e saliva), tentaram inteligentemente implementar o uso de máscaras como forma de prevenção da gripe. Mas se estes conselhos, hoje mais do que assentes em termos de controlo da doença, foram recebidos com alguma perplexidade e desconfiança pela própria classe médica, em geral, na comunicação social foram ridicularizados e houve mesmo alguns articulistas que compararam esta orientação preventiva ao uso de máscaras contra o célebre gás mostarda, terrível arma química usada durante a 1ª Guerra Mundial; se esta estratégia sanitária, na sua óptica, exagerada e fora do propósito, fosse levada a sério, não se tardaria “a ver nos boulevards parisienses toda a gente com uma máscara-preventiva, como se sobre o céu parisiense pairassem nuvens de gás asfixiante”.2

Rejeitando e fazendo chacota de tal medida, a comunicação social não se poupou a esforços de criticar e depreciar estes avisados conselhos e, portanto, será fácil de imaginar os índices de morbilidade e mortalidade que esta e outras “pestes”, uma vez eclodidas, acabariam por assumir. Por outro lado, nesta época, ainda não se podia contar com antibióticos (a sulfamida surge, apenas, em 1935, e a penicilina, descoberta em 1928, somente em 1942 vem a ser comercializada) e muito menos com imuno-moduladores, fármacos antivíricos ou vacinas anti-gripe. Os recursos médico-farmacêuticos eram escassos e não acessíveis a toda a gente. Esta situação, porém, repete-se nos nossos dias. Uma grande parte da população mundial, em especial, “no 3º Mundo”, passa fome e não tem recursos para adquirir medicamentos básicos. E nem sempre essa dificuldade se deve à falta de capacidade económica dos respectivos países e governos. O egoísmo e a completa ausência de sensibilidade e humanismo social de muitos desses governantes constituem a explicação para estes espectáculos ultrajantes e revoltantes que, infelizmente, marcam demasiadas vezes o pulsar da sociedade global a que pertencemos. E a comunidade internacional, por seu lado, assente no trabalho das OIG´s e ONG´s, nem sempre dispõe ou disponibiliza [de] verbas suficientes para colmatar tantas necessidades e carências.

Os ritmos imparáveis e imprevisíveis da Natureza e a evolução dos próprios microrganismos patogénicos terão acompanhado desde sempre a Humanidade e, para muitos “investigadores Malthusianos”, representam, mesmo, mecanismos irreversíveis de regulação demográfica. Mas se os factores naturais podem constituir ameaças sérias para os seres humanos, as crónicas e graves condições políticas e socioeconómicas observadas entre muitos povos, com especial impacto negativo a nível alimentar e higiénico-sanitário, são por si só geradoras de “terrenos” favoráveis à disseminação destas e de outras doenças infecto-contagiosas. Basta pensarmos no que se passa, hoje em dia, por exemplo, em países em “via de desenvolvimento” ou de 3º Mundo. Não dispõem de sistemas de saúde eficazes e acessíveis a toda a população e as doenças grassam com grande rapidez e com impacto demográfico tremendo. A indiferença dos governantes, o analfabetismo das populações, a miséria, a fome e as sub-condições higiénicas e sanitárias, aliados a estados permanentes de imunodepressão, promovem e facilitam o curso das doenças e o aumento da mortalidade.

Entretanto, a partir do estudo efectuado com base em métodos de análise factorial e correlação estatística, aplicados à população portuguesa continental de 1918, pude(mos) constatar que dois grupos etários, circunstancialmente mais fragilizados em termos imunitários, crianças entre os 12-23 meses (frequentemente debilitados por gastrenterites e, na maior parte dos casos, já sem grande protecção garantida pela amamentação materna) e adultos com idades compreendidas entre os 20-39 anos, os maiores alvos da tuberculose em Portugal, foram realmente os mais atingidos pela mortalidade gripal.3

Tendo em conta estes dados e a realidade socioeconómica planetária marcada por tantas e tão graves assimetrias, não nos devemos admirar que fenómenos gripais desta natureza possam vir ainda a fazer grandes estragos demográficos entre populações que vivem no limiar, senão mesmo no sub-limiar da pobreza e da precariedade social. Hoje, em pleno século XXI, milhões de indivíduos continuam a sofrer de graves carências alimentares e não tem acesso a sanidade básica nem a cuidados primários de saúde. E este panorama, infelizmente, não é só observável nos ditos “países em via de desenvolvimento”. Não. Desemprego, miséria, subalimentação ou fome, ausência ou dificuldade de práticas higiénico-sanitárias, e qualquer doença infecto-contagiosa encontra disponível terreno para a sua rápida disseminação. A Tuberculose aí está novamente, e em força, ceifando vidas, mesmo entre as populações dos países mais evoluídos, enquanto os tuberculostáticos começam a periclitar perante a resistência e agressividade do bacilo de Koch e, a par destes dramas do século XXI, a Gripe (dentre outras doenças emergentes como a SIDA, as Hepatites B e C e o Paludismo), por incrível que pareça, continua a ser uma das maiores causas de morte em todo o Mundo. Sem deixar de reconhecer a importância dos grandes avanços no domínio médico-farmacêutico, no domínio curativo e preventivo, parece-nos, pois, que a compreensão sociológica e epidemiológica destes fenómenos e a necessária definição de estratégias para a sua contenção passam, inevitavelmente, pela harmonização das condições de vida das populações, pelo acesso a uma boa higiene e a uma assistência médico-assistencial eficaz e generalizada. Sem isso, iremos, certamente, continuar a assistir a flagelos demográficos idênticos ou piores do que aquele que se verificou durante a Gripe Pandémica de 1918-19.

A resposta das autoridades sanitárias portuguesas, em 1918, foi pronta e dentro das capacidades do nosso sistema de saúde, então, sob a tutela de Ricardo Jorge. Não se conhecia na época, como já referimos, o agente viral (Mixovírus A H1N1), mas conhecia-se bem a doença, identificada por qualquer clínico. A sua descrição data já do século V a.C. e, para alguns autores, Tucídides terá sido o primeiro a presenciá-la e a referi-la (“peste de Atenas”), contrariando a tese (defendida por outros) de que se deverá atribuir a Hipócrates (460-377 a.C.) a primeira descrição da gripe.

A gripe “pneumónica” evoluiu em Portugal continental, em duas fases distintas: uma, de finais de Maio a meados de Julho, com carácter mais benigno, e a outra, de início de Agosto a finais e Novembro de 1918. Em países de maior dimensão e de densidade populacional baixa, a influenza ou “espanhola”, designação mais comum em todo mundo, terá perdurado até aos últimos meses de 1919. Em Portugal, porém, a sua trajectória varreu todo o continente em cerca de seis meses.

Na sua “primeira onda epidémica”, as autoridades portuguesas não accionaram grandes meios em termos de profilaxia e de higiene públicas. Mas em Setembro, quando se processou a “segunda vaga epidémica”, bem mais agressiva e virulenta, face aos números de mortalidade crescente em todo o lado, o Governo e as autoridades de saúde, em particular, põem em marcha uma série de mecanismos tendentes a minimizar o impacto da epidemia sobre as populações. Alargam-se horários de trabalho e de abertura de farmácias e hospitais, criam-se unidades de saúde e enfermarias em quartéis, colégios, escolas e conventos, recrutam-se voluntários e finalistas de medicina para apoio nos serviços médico-assistenciais, criam-se, sob ordens do Governo e do Presidente da República, face à crise generalizada que se vive, serviços de distribuição de esmolas e donativos a convalescentes e familiares de mortos mais necessitados. A sociedade civil teria aqui também um papel notável: surge, mercê da sensibilização veiculada pelo Diário de Notícias, a Associação Protectora dos Hospitalizados Pobres, a qual prolongaria a sua acção muito para além de 1919, apoiando órfãos e convalescentes. De um modo geral, as diversas associações de cariz filantrópico, como a Cruz Vermelha, a Cruz Verde, a Cruz Branca, a Cruz Roxa e a Cruz de Malta, apenas nas grandes cidades terão tido alguma importância, no contexto desta resposta nacional à crise epidémica que assolou o País, em 1918.

Alguns dos conselhos e orientações de carácter preventivo emanados da Direcção Geral de Saúde e, claramente, definidos pelo seu Director, Ricardo Jorge, consciente da infecto-contagiosidade desta gripe, da qual nem se conhecia o agente, como já foi dito, eram de uma actualidade e pertinência espantosas, tendo em conta a época em que foram emitidos pelo grande higienista e microbiologista, hoje patrono da Saúde Pública Portuguesa.

“Não fica mal deixar de visitar enfermos, apesar de ser obra de misericórdia; e também não fica mal, antes ficaria muito bem, acabar com os cumprimentos de uso – apertos de mão e ósculos de cerimónia, gestos que repugnam à higiene e até à cultura, restos que são do passado selvagem. As reverências chegam, bem mais inocentes do que toques suspeitos do próximo, e logo de cousas tão polutas como beiços e dedos”.4

Alguns povos limitam-se a vénias e reverências, como forma de cumprimento, e, nestas circunstâncias epidémico-pandémicas, teremos de admitir que ósculos e contactos físicos de beijos e mãos constituem sempre uma possível via de propagação de doenças infecciosas, de natureza viral ou não.

De acordo com o estudo que efectuámos e, naturalmente, tendo em conta, os dados estatísticos disponíveis, obtidos a partir do Movimento Fisiológico da População Portuguesa de 1918 e dos Registos de Notariado (óbitos), a gripe “pneumónica”, só em Portugal Continental, terá sido responsável por 60.474 mortos.5 Estamos, todavia, convictos de que, perante os elevados números de mortos por “doença desconhecida”, registados no mesmo ano, em praticamente todos os concelhos portugueses, depois de estabelecida a necessária correcção estatística, a mortalidade gripal terá sido francamente maior. Provavelmente, situar-se-á na ordem dos 150.000 mortos. Contudo, este número não passa de mera suposição.

As consequências sociológicas, aos mais diversos níveis, determinadas pela gripe pneumónica de 1918 não só constituem um bom motivo de reflexão para historiadores e sociólogos, como deverão ser, acima de tudo, objecto de estudo e compreensão para os epidemiologistas e, de uma maneira geral, para toda a comunidade médico-científica, em busca de soluções eficazes para o controlo deste tipo de flagelos emergentes.

Se tivermos em consideração que na Guerra morreram seguramente os mais jovens, a “melhor força de trabalho”, e, com a Gripe, faleceram também, em grande escala, os mais activos (entre os 20 e os 40 anos), fácil é de compreender as consequências que estes dois fenómenos terão desencadeado a nível social e económico. Sob o ponto de vista civilizacional, esta crise levaria à procura e ao desenvolvimento de respostas vacinais. A vacinação antivariólica já se realizava desde 1796, o BCG, contra a tuberculose, desde 1921 (aqui em Portugal, só a partir de 1928), e em 1918, pela primeira vez, foram testadas com relativo êxito as vacinas polivalentes anti-bacterianas de 1ª geração, produzidas pelo Instituto Pasteur, minimizando as complicações da gripe nos previamente vacinados ou conferindo-lhes mesmo uma suficiente protecção contra as complicações secundárias da doença. Isto, só por si, pode e deve ser considerado um ganho civilizacional e, sobretudo, médico-farmacêutico, de enorme relevância. Não pela eficácia, mas pelo significado que a descoberta e o fabrico de tais vacinas encerram na História da vacinação. Hoje, para além dos necessários cuidados higiénicos de natureza preventiva, muitos deles aprendidos na sequência e durante este drama pestilencial, podemos afirmar que a acção destas vacinas é reconhecida com base, não em estudos de natureza experimental e estatística, mas centrada em requisitos e parâmetros cientificamente estabelecidos, face à incontestável evidência clínica e terapêutica dos seus resultados. Mas a realidade terapêutica e a consciência higiénica de hoje, sobretudo nos países do “1º Mundo” (industrializados), mesmo tendo em conta a instabilidade permanente destes vírus, susceptíveis a mutações e a fenómenos de hibridação constantes, é hoje bem diferente da que caracterizava a sociedade em 1918. Todavia, apesar da possibilidade de acesso a medicamentos de grande poder farmacológico e terapêutico, desde antibióticos, a corticóides, anti-inflamatórios, imuno-moduladores e anti-víricos, em particular, os inibidores de neuraminidase viral – zanamivir (“Relenza”) e oseltamivir (“Tamiflu”), bem como a vacinas polivalentes e anti-gripais, cada vez mais eficazes, não nos iludamos. Há sempre o risco dos recursos farmacológicos poderem vir a ser ultrapassados na sua eficácia pela constante mudança e adaptação dos microrganismos. A História dos antibióticos e das muitas resistências bacterianas já observadas é bem elucidativa desse facto. Por outro lado, mesmo nas sociedades mais industrializadas, há graves assimetrias socioeconómicas, miséria e fome e nem todos os indivíduos têm condições para usufruir de tais recursos médico-farmacêuticos. E se é esta, infelizmente, a realidade de muita gente em países ricos, poder-se-á imaginar, uma vez mais o reafirmamos, o drama social em que se encontra e vive a maior parte dos habitantes nos países pobres. Mais de um terço da população mundial vive em sub-condições higiénicas e sanitárias, sofre de pobreza e de graves carências alimentares e, como tal, estará exposto a todo o tipo de doenças. O determinismo inalterável da velha trilogia “fome-imunodepressão-doença” rege, irreversivelmente, os desígnios dos menos afortunados. Os agentes microbianos responsáveis por estes flagelos demográficos tendem a ser, por razões ecoambientais, cada vez mais agressivos e virulentos, nestes largos “terrenos” imunitariamente frágeis e sem recursos médicos, e os esforços sanitários internacionais, sabemo-lo, nem sempre se revelam suficientes para a contenção e circunscrição destes surtos epidémico-pandémicos.

O Mixovírus A H1N1 aí está de novo e pronto a viajar, sem muitas restrições de vistos ou fronteiras. E quando uma “bola de neve” de grande contagiosidade, deste ou de outro tipo, se tornar imparável, nem os mais ricos, abastados e saudáveis ficarão suficientemente a salvo. As vacinas específicas eficazes e seguras contra o vírus H1N1 poderão, eventualmente, vir a ser a melhor arma de defesa contra a gripe, se forem criadas atempadamente, se o vírus, entretanto, não sofrer variações genéticas, sempre imprevisíveis, e, como é óbvio, se as populações e, em particular, as faixas etárias mais susceptíveis à doença, tiverem, todas elas, acesso fácil às mesmas vacinas. E será que tudo isto se concretizará sem falhas? As previsões, nomeadamente, para os “países em vias de desenvolvimento” não são animadoras. Enquanto a OMS prevê que cerca de um terço da população mundial possa vir a ser infectada pela gripe A (H1N1)v, Jorge Torgal, na linha de outros especialistas de infecciologia e epidemiologia, calcula que em Portugal possam vir a registar-se dois a três milhões de infectados e 75 mil mortos”.6 Esta visão é, verdadeiramente, aterradora. No entanto, e sem querermos ser optimistas em demasia, tendo em conta o perfil geral de mentalidade e consciência da população portuguesa, no século XXI, perante o risco de contágio e as graves consequências da doença, constantemente divulgados através da comunicação social, entendemos que, ao contrário, de 1918, há muito mais receptividade a todos os conselhos e medidas preventivos, desde o uso de máscara, a cuidados higiénicos individuais, a preservação de ambientes de maior risco, a vacinação, etc. Acreditando que a pandemia actual resulta não de um vírus geneticamente manipulado (uma vez que hoje há engenharia suficiente para o seu fabrico), mas de um microrganismo com origem natural, a possibilidade de vir a ocorrer uma maior agressividade viral do actual “A H1N1” ou mesmo de uma recombinação genética entre este vírus e um outro vírus sazonal de gripe humana ou animal (como um H5N1, por exemplo), reunidas as condições climatéricas ideais para o efeito, ou seja, a partir de Setembro ou Outubro, quando os primeiros frios nos batem à porta, são sempre hipóteses a prever e a temer. Tal como terá acontecido em 1918. Mas a morbilidade e mortalidade gripal na época fria de Outono e Inverno faz sempre, todos os anos, algumas vítimas, apesar de todos os cuidados e de todos os recursos ao nosso alcance. Pensamos, no entanto, que a morbilidade desencadeada por este actual surto pandémico de gripe, face ao comportamento do vírus H1N1, tenderá a manter-se alta, mas a mortalidade não irá ser tão elevada como alguns prevêem. E isto terá a ver, seguramente, com a preparação psicológica e sanitária da população, muito mais consciente, atenta e avisada dos cuidados preventivos a seguir, quer em ambiente familiar, quer em contextos profissionais ou sociais de risco. Por outro lado, a eficácia dos actuais recursos médico-farmacêuticos é incontestável. Mas os mais idosos e os mais frágeis ou sensíveis, sobretudo aqueles que sofrem de doenças crónicas (cardiovasculares e pulmonares, diabéticos, alcoólicos, cirróticos, etc.) e os que apresentem imunodeficiências, temporárias ou não, bem como mulheres grávidas, aparentemente mais susceptíveis a esta gripe e também mais restringidas no uso de fármacos, pela sua própria condição de gestantes, esses sim, deverão estar na primeira linha das preocupações da medicina. Os restantes sectores da população, digamos assim, os que não sofrem de doenças crónicas e se apresentam com uma imunidade relativamente estável, tendo em conta a enorme contagiosidade desta gripe, poderão vir a contribuir para a grande morbilidade característica da doença mas, estamos convictos, não constituem, a priori, potenciais alvos da mortalidade viral, como aconteceu em 1918.

A acreditarmos, porém, que o comportamento deste vírus A H1N1 não será muito diferente do vírus (também A H1N1) de 1918, mesmo sabendo que os contextos sociológicos em que se verifica(ra)m as duas pandemias nada têm de comum, poderemos prever como se irá distribuir a mortalidade, tendo em linha de conta os resultados estatísticos que apurámos para os 4 universos sociológicos investigados no contexto do estudo que efectuámos sobre a mortalidade  em Portugal Continental, durante a “gripe espanhola” ou “pneumónica”.  Assim, os grupos etários mais “flagelados”, por ordem decrescente, seriam, “grosso modo”, as crianças até aos 3 anos de idade (sendo o grupo dos 12-23 meses o mais sacrificado), logo seguidas dos adultos com idades entre os 20 e os 40 anos e os mais idosos, com idades iguais e acima dos oitenta anos.7

Enquanto há umas décadas largas atrás, por razões de hábitos, alimentação e até biotipologia genética e hormonal, as mulheres amamentavam até tarde, em muitos casos bem para lá do ano de vida da criança, sobretudo aquelas que viviam em ambientes rurais, mais próximas e identificadas com a “Mãe Natureza”, como ainda acontece entre algumas “comunidades simples” do Globo, hoje em dia esta situação é uma raridade. Defende-se e aconselha-se, veementemente, o aleitamento materno exclusivo ou quase exclusivo, pelo menos até aos 6 meses de idade, mas há muitos lactentes que, por diversas razões, algumas delas plausíveis e justificáveis, outras nem tanto, ou não chegam sequer a provar o leite da mãe ou bebem-no apenas nas primeiras semanas de vida. Por isso, talvez seja mesmo de considerar o aconselhamento e a aplicação de vacinas específicas anti-gripe, sob orientação médica adequada, pelo menos, a partir dos 6 meses de idade, altura em que a criança deixa seguramente de poder contar com a imunidade natural conferida pela amamentação materna.

Reflectindo ainda sobre os resultados supracitados, relativos à prevalência da mortalidade gripal de 1918 por grupo etário, em Portugal Continental, queremos frisar que não passam de aferições estatísticas e só apontam tendências e não certezas absolutas.

De qualquer modo, os “planos de contingência de gripe” estabelecem-se com base no comportamento epidemiológico dos vírus ao longo da História e, sobretudo, fundamentam-se em reflexões cientificamente ponderadas, bem como em conclusões estatísticas definidoras de incidências e prevalências de morbilidade e mortalidade, as quais, se estabelecidas com rigor, não devem ser de todo subestimadas. A História é e sempre foi uma das nossas melhores “Mestras”, em todos os campos do saber. Das muitas lições aprendidas, há algumas que constituem regras e conceitos básicos no domínio da prevenção da gripe e de outras doenças transmitidas por via aérea.

Da lista de recomendações e medidas preventivas que a seguir apresentamos, não muito diferentes daquelas que as autoridades nacionais e internacionais de saúde veiculam, há no entanto algumas que nos merecem diversos comentários e reflexões.

Evitar a permanência, dentro do possível, em ajuntamentos e locais ou espaços, especialmente, fechados, com grande densidade populacional, onde a probabilidade de contágio aumenta; é evidente que o simples facto de se respirar ar condicionado em “circuito forçado”, mesmo fazendo uso de filtros “ditos especiais”, embora estes possam oferecer maior segurança, constitui sempre um risco significativo.

Se houver suspeita de se ter contraído gripe, deve-se procurar confirmar junto do médico o diagnóstico e, até prova em contrário, aconselha-se a protecção das entradas/saídas respiratórias (nariz e boca) com lenços ou máscaras, a fim de não se contaminar ninguém, através da tosse e espirros; de igual modo, sempre que se tussa ou espirre, a fim de evitar projectar quaisquer partículas de muco ou saliva sobre outras pessoas próximas, na ausência de lenço disponível, é melhor fazê-lo sobre o próprio braço ou antebraço. Esta barreira previne a eventual formação de nuvens de aerossóis constituídos pelas pequeníssimas “partículas de fludge”, sempre passíveis de conter grandes concentrações de vírus.

A OMS não aconselha o uso preventivo de máscara (cobrindo nariz e boca) para quem, não estando doente, tenha que permanecer em ambientes ou espaços públicos fechados e pouco arejados. Por outro lado, recomenda que se evite, dentro do possível, viagens de avião. Neste meio de transporte, o ar que se respira é forçado a girar, obrigatoriamente, em circuito fechado. Na nossa opinião, os passageiros, logo que cumpridas as normas de identificação, uma vez dentro da aeronave, exactamente, pelas razões atrás apontadas (emanadas pela própria OMS), deveriam poder fazer uso de máscara. Caberia ao passageiro a decisão de a usar e de a retirar, ou não, durante a sua presença a bordo. A possibilidade de ingestão de água, sumos, leite ou outros alimentos sob a forma líquida, através de palhinha ou sonda aspirativa, passíveis de serem usadas sem comprometer grandemente o sistema de protecção por máscara (tapando a boca e o nariz) resolveria a questão de logística alimentar. Como é óbvio, aplicar máscara protectora e tentar mantê-la em crianças pequenas (abaixo dos 2 anos), é/seria uma tarefa difícil de realizar. Constitui, mesmo, a única dificuldade, que antevemos, de resolução bastante complicada. Por isso, às mães com crianças pequenas damos o conselho que nos parece mais adequado às circunstâncias actuais: protelar e evitar viagens de avião, o mais possível, enquanto este surto pandémico não estiver extinto.

Os outros passageiros, no entanto, se pudessem dispor de máscara, sentir-se-iam, seguramente, muito menos vulneráveis. Um “eventual infectado” a bordo, que possa passar despercebido no controlo das autoridades sanitárias, por se encontrar numa fase prodrómica da doença, tem muito menos hipóteses de contaminar os restantes passageiros. Poderá pensar-se que não permitir o uso de máscara a bordo de aviões comerciais é, não só, uma estratégia inteligente, como a melhor forma de evitar o pânico e a insegurança entre as pessoas. Mas também não parece ser esta a melhor solução para se ultrapassar o temor de permanecer em espaço fechado, respirando o ar que todos respiram, em colisão total com as próprias normas emitidas pela OMS e pelas autoridades nacionais de saúde. Seria melhor reflectir sobre tantos paradoxos e contradições e deixar, de vez, de “enterrar a cabeça na areia”. Embora sempre com a noção de que não é possível eliminar completamente o risco de contágio, estamos convictos de que todos ganhariam com a medida, incluindo as empresas de transportes aéreos, consideravelmente ressentidas com a quebra do número de viagens, desde o início da pandemia.

Ter em atenção o contacto com objectos ou materiais infectados por doentes (corrimãos, maçanetas de porta, pegas de autocarros, mesas, secretárias, telefones, computadores, mangueiras e teclados em bombas de combustível, etc.), e proteger as mãos com luvas ou lenços de papel descartáveis.

Desinfectar, sempre que possível, todos os materiais manuseados por indivíduos, crianças ou adultos, suspeitos de doença

Se se contrair a doença, respeitar o isolamento temporário no domicílio, local de alojamento temporário,  ou em espaço de “quarentena” medicamente aconselhado, de forma a não contaminar ninguém e a evitar complicações secundárias da gripe (bronquites e pneumonias).

Lavar as mãos com água e sabão ou produtos anti-sépticos medicamente recomendados, e secá-las, sempre que possível, com toalhetes descartáveis.

Evitar contactos das mãos ou lenços sujos de muco (de tosse ou espirros) com os olhos e o nariz, também portas de entrada da doença.

Instruir suficientemente as crianças para respeitar o mais possível estes requisitos e normas preventivas.

Estes são alguns dos cuidados higiénicos importantes a reter que, se observados em situações de crise epidémica deste ou de qualquer outro tipo, poderão ajudar a fazer a diferença.8

Admitindo, porém, que outras estratégias preventivas, nomeadamente, de natureza vacinal irão ser implementadas, para além da vacina específica contra o mixovirus Influenza A H1N1, disponível para uma grande parte da população, de acordo com as decisões sanitárias decorrentes dos planos de contingência estabelecidos nos demais países, entendemos também que a aplicação da vacina anti-pneumocócica pode(ria) ser (e é, sem dúvida) uma medida complementar de grande importância profiláctica. Em Portugal, esta vacina, com o nome comercial "Prevenar™", não fazendo parte do programa nacional de vacinação, é habitualmente recomendada pela classe médica e aplicada, sobretudo, nas camadas mais jovens. Todavia, mesmo entre a população pediátrica, porque é uma vacina relativamente cara e o seu esquema de aplicação exige frequentemente várias doses, nem todas as famílias têm recursos para propiciar aos seus filhos o acesso a este recurso preventivo. As faixas pediátricas etárias mais velhas (após os 5 anos de idade), de um modo geral, não são sujeitas, nem aconselhadas, a tal vacinação.

No que diz respeito a adultos e, em particular, aos indivíduos mais idosos ou mesmo de meia-idade com défices de imunidade, que possam sofrer de qualquer tipo de insuficiência ou doença crónica ou que residam ou trabalhem em locais onde haja maior risco de infecções pneumocócicas, dever-se-ia aconselhar, naturalmente, sob a devida orientação médica, uma outra vacina anti-pneumocócica, a “Pneumo23TM”, independentemente da aplicação de qualquer vacina anti-gripal que venha a ser recomendada como medida profiláctica. Não nos esqueçamos de que uma grande parte das graves complicações desencadeadas por gripe, muitas vezes fatais, são exactamente as “pneumonias por pneumococo”. De igual modo, as vacinas orais polivalentes e os imuno-moduladores, com bons resultados comprovados nos múltiplos “estudos de evidência clínica” realizados desde há largos anos, prescritos naturalmente sob orientação médica, podem constituir uma outra arma terapêutica de grande valia na luta preventiva contra a gripe e as suas complicações mais graves.

"Vale a pena pensar nisto"!

Devemos fazer uso, com inteligência e prudência, de todos os meios ao nosso alcance, para reduzirmos, ao mínimo, o índice de mortalidade desta gripe A (H1N1)v.

Os “planos de contingência” e as estratégias sanitárias de cada país, embora imprescindíveis, valem muito pouco se as populações não puderem usufruir minimamente das barreiras básicas que a alimentação, a higiene e a assistência médica asseguram, no contexto individual e colectivo. Confiemos na Ciência Médica e na sua capacidade de resposta mas, acima de tudo, acreditemos que a Sociedade Planetária, hoje mais informada e consciente de pertencer a uma “aldeia global”, é capaz de apostar na força da sua solidariedade e cooperação (minimizando a fome e a miséria e promovendo o desenvolvimento) e de fortalecer a acção e inter-acção sanitária internacional, organizada e planificada sob a égide da OMS, “alavancas” fundamentais para o controlo desta e de outras doenças, no mundo em que vivemos.

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1  Frada, João. A gripe pneumónica em Portugal Continental (1918): estudo socioeconómico e epidemiológico. 1ª edição, Lisboa, Setcam. 2005, p. 221 [Obra esgotada em livrarias, apenas disponível na Editora Clinfontur ClinMedLda]

2  Idem, p. 242

3  Idem, p. 226

4  Jorge, Ricardo. Influenza: nova incursão peninsular, Lisboa, Imprensa Nacional, 1918, p. 13

5  Idem, p. 109

6  Gripe H1N1 – Epidemia poderá provocar dois a três milhões de infectados e 75 mil mortos em Portugal in Lusa/SOL de 08.05.09 (http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.aspx?content_id=134377)

7  Frada, João, op. Cit., p. 222

8  Lista de conselhos e regras básicas para prevenção e redução de complicações da gripe (estabelecida com base nas nossas próprias reflexões e em informação colhida no Portal da Saúde – Vírus Gripe H1N1 (www.min-saude.pt/portal/...saude/saude.../gripe/virus+h1h1.htm)

 

* Autor: João Frada — Médico, Professor aposentado da Faculdade de Medicina de Lisboa

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João Frada © Portal de Saúde Pública, 2009