Medicina e Sociedade

Os Aleijados de Amanhã *

O título é forte, concordamos, mas a situação a que se expõem milhares de jovens portugueses em idade escolar, sob a nossa anuência (de todos nós, é evidente, incluindo famílias, sociedade e governantes, em especial, autoridades de saúde) ditada, infelizmente, mais por ignorância do que por indiferença, justifica, pela sua incontestável gravidade, este chamamento de alerta e reflexão.

De segunda a sexta, e quantas vezes também ao sábado, aí vão eles, de todos os tamanhos e idades, pela rua fora, rumo à escola, vergados sob pesados sacos, malas e mochilas, repletos como odres, completamente indiferentes e alheios aos perigos que este “trabalho de estiva” lhes pode acarretar.

Arrastando, por vezes horas seguidas, cargas brutais de livros, sebentas, dicionários e outros materiais escolares, [incluindo, agora, os “Magalhães”], sapatos e roupas de ginástica, capa e guarda-chuva, almoço e/ou lanche, o esforço despendido durante anos, neste ritual obrigatório, forçosamente trará a estes organismos em desenvolvimento e formação, sobretudo dos jovens de idades médias entre os 6 e os 15 anos (1º, 2º e 3º ciclos), malefícios esquelético-estruturais, alguns deles dramáticos e irreversíveis.  

Segundo a opinião de alguns especialistas em ergonomia, fisiatria e medicina do trabalho, se a carga transportada às costas não exceder os 10% do peso corporal e os percursos realizados a pé por estes jovens “sherpas” não forem demasiado longos, os males nunca serão muito graves. Bom, e se os pesos ultrapassarem esse limite percentual, o que sucede quase sempre?! E se as distâncias forem, mesmo, consideráveis?! Sim, porque nem todos possuem meio de transporte próprio. Por outro lado, também não é raro ver jovens que dele dispõem preferirem a deslocação a pé, em franco convívio com os colegas durante o intervalo de almoço ou depois das aulas, até aos vários pólos de atracção do bairro ou da cidade…com a mala, o saco ou a mochila alojado(a) às costas, pendurado(a) na mão ou no ombro, o tempo todo. A opção de puxar uma mochila ou um malote escolar, rolando sobre rodinhas, menos traumático para o esqueleto e para a estrutura muscular, por isso mesmo mais aconselhável, ainda não constitui uma realidade de grande expressão entre a nossa população estudantil. E provavelmente nunca constituirá, já que os jovens têm a noção de que os seus pertences, solidariamente ajustados ao corpo (ao dorso ou  a um dos ombros), dentro da sacola ou da mochila, estarão mais protegidos, disponíveis e com menor risco de extravio, nas suas deambulações diárias e são, também, mais práticos “and more fashion”.

A resistência de cada corpo depende, obviamente, de vários factores, todos eles variáveis de indivíduo para indivíduo, os quais, de um modo simples, podemos relacionar com dois aspectos distintos:

- O estado geral de saúde,

- O grau de desenvolvimento e solidez das estruturas ligamentosas, tendino-musculares e osteo-articulares.

Por isso, avaliar o grau de risco a que se expõe cada jovem, quando sujeito a estas circunstâncias de esforço e de tracção quase diários, não é tarefa fácil. Todavia, perante o habitual excedente de carga transportada para além de 10% do peso corporal, recomendado como limite máximo, mesmo um leigo terá a noção de que esta agressão ergonómica constante poderá trazer forçosamente inconvenientes para a saúde.

Para o cumprimento dos novos requisitos, métodos e sistemas pedagógicos, a população estudantil tem que mobilizar “fardos” pesadíssimos, agredindo, profundamente, as articulações da coluna e dos membros superiores e inferiores, como seria de prever.

Experimentemos, pois, cada um de nós, a pesar na balança, dia a dia, durante uma semana, o alforge que os nossos filhos terão que arrastar até à escola e, como é óbvio, no regresso a casa… sem contar, naturalmente, com os meios-tempos, uma pequena curva pelo centro comercial ou por outro pólo qualquer do seu interesse e constataremos que muitas vezes levam às costa quase um terço do seu peso corporal.

Se todos nos consciencializarmos da suma importância do problema, pais, médicos e professores, poderemos alertar os jovens para a importância da sua correcção e prevenção, ajudando-os a seleccionar, dentro do possível, a carga desses sacos ou mochilas, minimizando assim os riscos daí provenientes.

Disfunções musculares e esqueléticas e, em particular, desvios anómalos ou viciosos da coluna, cifoses (corcunda), lordoses (curva lombar muito acentuada) e escolioses (curva lateral da coluna em “S”), acompanhados de dores [nas costas], podem ser algumas das resultantes desse esforço de tracção exagerado. Mas se as mialgias (dores musculares) e raquialgias (dores da coluna) constituem uma parte desses perigos, quando a tensão sobre as articulações é prolongada (ao longo de anos) e muito acima do que se prevê (em termos de transporte de peso), com o tempo, o risco de artrose também existe. Qualquer agressão articular constante, prolongada ou repetida, mesmo em crianças e adolescentes, dependendo, como é natural, do seu perfil genético, biomecânico, cultural, económico e psicossocial, pode desencadear episódios de sinovite articular e esta abre, frequentemente, a porta à osteoartrose na vida futura. A artrose, determinada neste caso por sobrecarga de função articular, acompanha-se irreversivelmente de dor e rigidez. Estes riscos sérios a que expõe uma grande percentagem de jovens portugueses, no cumprimento diário, ou quase diário, das pesadas exigências logístico-escolares, não pode, nem deve, pois, continuar a ser subavaliado.

A confirmar os factos, e desde há vários anos, a medicina portuguesa tem vindo a diagnosticar com demasiada frequência patologia desta natureza nas “camadas estudantis” entre o 5º e o 12º anos, incontestavelmente, os mais sacrificados pelas exigências do actual sistema pedagógico, pretensamente inteligente e de vanguarda, também pautado por normas sanitárias que, à partida deveriam contribuir para prevenir e corrigir entre a população estudantil problemas e distúrbios de carácter infeccioso, higiénico, alimentar e biomecânico, como é este o caso. Estudos de saúde realizados entre a população escolar portuguesa demonstram já que 25% a 40% das crianças em idade escolar (Matos, Simões, Carvalhosa, Reis & Canha, 2000) revelam dores nas costas, provocadas pelo transporte de mochilas demasiado pesadas, grandes demais em relação à altura do tronco, mal ajustadas ao dorso ou penduradas simplesmente sobre um dos ombros.1

Meditemos, atentamente, sobre o assunto e não subvalorizemos o mal-estar ou as “dores nas costas” relatados pelos nossos filhos. Tais queixas podem ser o primeiro indício dessa sobrecarga mioesquelética.

O peso da mochila não mata mas mói. Mói, literalmente, as articulações e a coluna vertebral é, com frequência, a mais atingida/lesada neste processo.

Talvez seja chegada a altura das várias entidades oficiais responsáveis pelo ensino em Portugal deixarem de se preocupar, apenas, com métodos e resultados de avaliação, e começarem por reflectir também sobre este problema de saúde pública nacional escolar. Temos a consciência que o pragmatismo político-partidário domina e determina, fortemente, as decisões daqueles que nos governam em cada conjuntura. Nessa medida, embora a solução radical do problema em causa (patologia mioesquelética por excesso de peso do saco ou mochila) possa implicar um esforço orçamental suplementar considerável, é conveniente ter em conta que, também em política, o “nada se perde, tudo se transforma” acontece algumas vezes, para o melhor e para o pior.

Senhores governantes, os jovens de agora serão os homens de amanhã e tudo quanto não fizerdes por eles hoje, ser-vos-á, inexoravelmente, de uma forma ou de outra, cobrado no futuro.      

“A memória do povo é curta”, diz-se, mas quando se trata da “carteira” ou da saúde, as lembranças não se apagam facilmente. E a desilusão e o descontentamento são o pior adubo para qualquer sementeira eleitoral. 

À imagem do que já se fez e faz em outros países confrontados com o mesmo problema, o governo português poderia criar e aplicar estratégias com vista à sua prevenção ou minimização, as quais poderiam assentar, simplesmente, em medidas deste tipo:

- Equipar as escolas com cacifos em número adequado, destinados à guarda de objectos, livros e materiais escolares.

- Dispor de mesas de trabalho, carteiras e cadeiras suficientemente ajustáveis a todas as estaturas, o mais anatomicamente adequadas, de modo a que os jovens não tenham que se curvar em excesso sobre enquanto desenham, manuseiam objectos, escrevem ou lêem.

- Organizar e implementar actividades físicas obrigatórias e sempre orientadas com racionalidade pelos respectivos professores de educação física, apoiados sempre por profissionais de saúde que, em conjunto, deverão proceder a uma avaliação de diagnóstico de todos os alunos, em termos saúde geral mas, sobretudo, de biotipologia esquelética e muscular. Esta avaliação permitirá, não só, aferir o perfil de cada aluno em relação às suas eventuais limitações em relação ao esforço (de natureza cardíaca, respiratória, renal, etc. ), como facilitará a identificação daqueles que, por apresentarem desvios posturais e deformações esqueléticas viciosas, com ou sem queixas associadas, terão que ser imediatamente orientados para a consulta médica adequada (fisiatria e/ou ortopedia). A partir deste processo selectivo, os alunos deverão ser consciencializados da sua condição física e enquadrados com restrições ou sem restrições, em programas de exercício físico racionais, suficientemente correctivos e fortalecedores das articulações e da musculatura torácica. O êxito desta medida escolar, assente na prática de actividade física regular, que consideramos absolutamente fundamental para a correcção e prevenção destes vícios posturais, resulta quer de um ganho de [maior] resistência e equilíbrio muscular, quer da redução imediata do stress e da tensão exercida sobre os músculos e articulações do tronco, promovidos pelo alongamento e pela descontracção gerados pelos exercícios de ginástica.

- As mochilas, em tecido impermeável e suficientemente herméticas à água da chuva, devem ajustar-se perfeitamente às costas da criança ou do jovem, não excedendo demasiado a sua altura de tronco, e têm que ser rígidas e dispor de um encosto almofadado/acolchoado. As alças devem ser também almofadadas e suficientemente largas e ajustadas aos ombros, para haver uma distribuição equilibrada do peso da mochila sobre as costas e esta deverá possuir um cinto regulável na largura, de modo a ficar o mais solidária possível com as costas, evitando movimentos e balanços com repercussões negativas sobre a coluna. A mochila jamais deverá ser transportada sobre a anca e pendente apenas de um dos ombros.

É evidente que o culto do uso individual do livro, no qual o aluno escreve, desenha, pinta e anota, constitui uma estratégia de ensino bem diferente da que se aconselhava e seguia há largos anos atrás, em que tudo se gravava em cadernos, poupando-se o mais possível a integridade do dito livro. Esta metodologia actual implica, é certo, uma ligação mais envolvente com o próprio livro, mas em nada facilita a solução do problema em causa, se o mesmo tiver que ser, eventualmente, transportado todos os dias na sacola ou na mochila. A menos que os docentes tenham o cuidado de educar e orientar os seus alunos no sentido de apenas levarem consigo, no dia-a-dia, as obras ou livros essenciais para o trabalho programático previsto. O livro, cada livro, assim utilizado, servindo, simultaneamente, de leitura e de caderno de apontamentos, se não se proceder a uma triagem diária do que fica em casa e do que tem que se levar, passa a ser algumas vezes um peso morto sem utilidade, já que nem sempre é necessário, a somar ao peso de outros tantos, ocasionalmente imprescindíveis ou também desnecessários carregados no saco ou na mochila. Umas simples fotocópias, a cor ou a preto e branco, resolviam o problema mas implicavam algumas verbas extra aplicadas na reformulação dos métodos de educação e formação escolar. E aliviavam-se as costas dos alunos. Mas essa é a questão essencial. É problema que não parece implicar, até agora, “risco sanitário sistémico” e, como tal, poderá não justificar quaisquer medidas ou investimentos. Aliás, ou por falta de informação epidemiológica adequada ou por passividade das autoridades de saúde, a verdade é que o problema não parece incomodar ninguém, a não ser aqueles a quem o peso da mochila vai fazendo mossa. Este tipo de patologia já se vai diagnosticando vezes demais nos nossos jovens e tudo quanto possa ser feito agora para diminuir o seu impacto reduzirá, no futuro, a onerosidade dos custos com a saúde. Estas artralgias, em especial, dorsalgias e raquialgias, desencadeadas pelo peso excessivo de sacos e mochilas escolares, face à sua dimensão, nem sempre bem aferida nas suas reais causas e complicações, se ainda não constituem, parece, preocupação muito evidente para os agentes responsáveis pelos domínios da educação e da saúde pública, pelo menos que se tornem um sinal de alerta para a comunicação social e sociedade civil, as quais têm servido sempre de porta-estandarte nas grandes marchas de mudança política do nosso País.      

Se tal sistema fosse implementado, o da predominante utilização de fotocópias e meios informáticos, limitando gastos de papel, cada aluno poderia doar os seus próprios livros à biblioteca escolar no final de cada ano lectivo para distribuição e uso das gerações mais novas de estudantes, enquanto os programas curriculares não sofressem alterações, dando corpo ao recente projecto escolar do “Dar de Volta”. Seria uma iniciativa útil e solidária.  

Limitando a carga diária arrastada sobre o dorso e sobre os ombros e os gastos familiares anuais com a compra de livros, ainda que se tenha de investir, obrigatoriamente, na logística escolar, criando as necessárias condições para o trabalho e a aprendizagem do aluno durante o tempo de aulas, contribuir-se-ia, simultaneamente, para dois objectivos fundamentais: a saúde dos jovens e a economia das famílias, sobretudo daquelas que vivem em condições financeiras bastante difíceis, e essa vai sendo uma triste e alargada realidade em nossos dias.

Beneficiava-se, não só, a “saúde corporal” dos nossos jovens, como a sua “saúde económica” e a das respectivas famílias.  

Estamos convictos de que a concretização de um projecto desta natureza traria, inevitavelmente, a médio e a longo prazo, benefícios e compensações nos domínios da saúde, da educação, da economia e da política.

O bem-estar físico e mental de cada cidadão deve constituir um dos mais elevados objectivos da política interna defendida e praticada pelo Estado.

Só apostando numa Juventude educada, forte, saudável e solidária, poderemos ganhar as “grandes batalhas” do futuro.

 

1 Noronha T.; Vital E. Fisioterapia na Saúde Escolar – dos modelos às práticas (http: //www.afisioterapia.com/artigos/pdf/AF1_4_11-28.pdf).

 

 

* Autor: João Frada — Médico, Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa. Artigo publicado na Revista de Medicina, 1994, 2, V série, Vol.1, Nº2, pp.43-44 (texto truncado e, agora, actualizado, com alguns dados e informações adicionais).

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