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Passado, Presente e Futuro da Saúde Pública

Reflexão em Português 1

“ A Europa jaz, posta nos cotovelos:

(...)

Fita, com olhar esfíngeo e fatal,

Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.”

Fernando Pessoa, in Mensagem (Poema “Os Campos”)

Seja Portugal o nosso espaço, o tempo é bem mais lato: passado, presente e futuro.

A pessoa, de nome próprio “Saúde Pública”, solicita a sua reflexão.

Pegue-se na epígrafe, como trampolim de dissertação.

Se, originalmente, Pessoa queria transmitir uma certa “mensagem”, o seu intuito não sairá daqui muito deturpado se a aplicarmos e concretizarmos ao cenário reflexivo que nos é proposto.

Sim, a Europa ainda nos fita!... Talvez cansada, de tanto aguardar Portugal, tenha anquilosado seus antigos e continentais cotovelos. Mas fita-o, com olhar fixo, contundente, penetrante... como quem vigia, monitoriza e avalia uma presença ou desempenho.

No recanto mais ocidental da Europa, reside a responsabilidade (e a esperança) de cumprir um passado, rumar para um futuro... condizente com o plano e exigência dos pares continentais e mundiais.

E o presente? Que é (d)o presente?

É o baluarte dos tempos... aquele que unirá a história de gloriosas conquistas do passado a um futuro de cumprimento sebastianista do quinto império, para nós (e por nós) sonhado... ou não fora essa a alma de Portugal, até para a sua Saúde.

Passado

Que nos seus erros e virtudes, seja campo de análise e meditação. Estudando o passado se compreende o presente e se projecta o futuro.

Tal como noutros países: nutrição, alimentação, saneamento, água potável, vacinação e antibioterapia, industrialização e crescimento económico, progresso tecnico-científico, políticas de protecção social e de saúde, programas de saúde dirigidos (como o da saúde materno-infantil), contribuíram para bons indicadores de Saúde Pública em Portugal.

Saliente-se a posição tão desvantajosa e as profundas limitações de que sempre se partiu: escassez de recursos humanos e financeiros, parcos serviços e infra-estruturas aos mais diversos níveis, baixo índice cultural da população, isolamento politico-diplomático, desfasamento técnico-científico...

Mas honras sejam feitas a quem contra elas lutou e cujo trabalho e entusiasmo se vieram a traduzir em diminuição da morbilidade, incapacidade, sofrimento e mortalidade precoce.

Quais tenazes navegadores, de “meritosa insanidade”!

Sem recuar demasiadamente, reaviva-se a memória do século passado, onde a Saúde Pública já podia, com propriedade, ser entendida como tal. Há acontecimentos que merecem relevo histórico: a Reforma de Ricardo Jorge, em 1901; a Introdução do PNV, em 1965; a Reforma de Gonçalves Ferreira, em 1971; a Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, em 1979; a Regulamentação das Carreiras Médicas, 1982; a Lei de Bases da Saúde, de 1990; a Organização dos Serviços de Saúde Pública, 1999; Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, 2005.

Ao novo milénio chega um Sistema Nacional de Saúde (SNS) já intrinsecamente enfermo, com heranças repetidas: reformas quase sempre dependentes de modelos anteriores, raramente levadas até ao fim, de rica elaboração normativa mas parcamente implementadas, severas dificuldades financeiras e burocráticas, precária agilidade e fluidez na resposta ao cidadão, desequilíbrios demográficos e socio-económicos no acesso a cuidados de saúde...

A agravar o painel, surgem novas ameaças (algumas extrínsecas) que o debilitam ainda mais: contexto mundial de insegurança, globalizado, interesses económicos conflituosos, novas possibilidades de prestação de cuidados (e pressão para as “experimentar” a nível nacional).

Chega-nos ainda uma herança de dificuldades que ultrapassa o SNS mas que lhe impõe adaptações. A redução progressiva da natalidade, o envelhecimento da população, transição epidemiológica dos padrões de morbilidade: aumento das doenças cardio e cerebro-vasculares, diabetes, doenças oncológicas, musculo-esqueléticas, neurológicas e psiquiátricas. Mantém-se a dificuldade do controlo de doenças transmissíveis (tuberculose, HIV/SIDA).

Presente

Como se viu, acenam problemas e necessidades. Urge o tempo. São muitos e colossais os desafios existentes. As marés não são mais favoráveis nem mais pequeno o Adamastor.

A herança e falência de medidas do passado não devem paralisar, atracar caravelas à costa. A passividade é reprovada pelo povo e pela Europa.

O Presente é a “Desejada” ponte entre paradigmas.

A expectativa face a uma história possante e habituada a heróis, faz com que, perante cenários desfavoráveis e privadores, se “aguce o engenho e arte”, e se reclame, avidamente, futuro...

E não é só pelo desejo de evolução construtiva (queremos ir até ele) mas também porque cada vez mais o presente é fugaz e o futuro imediato (ele vem até nós). Eis a nova velocidade do progresso e do surgimento de novos estímulos.

Todos os dados e recursos oriundos do passado, são as cartas de marear, bússola e astrolábio com que se contará para lançar a frota ao mar. Em cada porto se colherá reforço e ensinamento, e em cada cabo pode existir tormenta... mas também muita esperança!

Futuro

Contrariamente ao que se passava com os nossos antepassados, o mundo e o futuro não nos são tão desconhecidos e confabulados. Tal não significa, contudo, que a nossa menor fragilidade e ignorância nos retira completamente o respeito e a cautela. Porventura, talvez aconteça o inverso: há menos desculpa na falha, no “engano da cartografia”. Sabemos, desde já, que temos muitos desafios, de grandeza diferente, uns em vigor outros previsíveis… mas também recursos e conhecimento para os contornar.

Depois dum percurso histórico, que passou pela Protecção Social e Políticas de Saúde, surge agora a era da Governação da Saúde. Talvez a sua maior premência seja a efectiva concretização. É necessário que o país adquira a “cultura da governação”, capaz de implementar as políticas públicas formuladas, com horizontes temporais previstos, com resultados demonstráveis e avaliáveis.

Há que assumir as dificuldades dessa implementação se se desconhecer a “terreno”, ou seja, os recursos, actores e agentes sociais. A expectativa de sucesso, independente da interacção social, é ingénua e antecipa fracasso. Há que conhecer e aproximar os níveis teórico (ou formal) e prático (ou real), função duma das vertentes da Governação: a Governança.

Nesse empreendimento surge o importante contributo, a incluir cada vez mais nas decisões e práticas de Saúde Pública, das Ciências Sociais. Além de pilares já instituídos ou assumidos (Epidemiologia, Estatística, Informática, Economia...), esta área do conhecimento é uma mais valia a operacionalizar e a integrar no processo de prospecção/diagnóstico nas populações, elaboração de políticas públicas, estratégias de implementação, investigação em saúde, etc.

A Governação deverá ter um carácter normativo, consertado e coerente. Para tal, a aproximação da legitimidade política à legitimidade técnica deve ser também algo a alcançar. Muito provavelmente é, também, o caminho para acções não focalizadas ou parcelares mas de carácter transversal, integrado e lógico, mas principalmente, com relevantes ganhos em saúde pública.

Por aqui se infere, claramente, a necessidade do Planeamento em Saúde, outro importante pilar da Saúde Pública e uma grande prioridade para o devir português. Em Portugal, é também quase inexistente a “cultura do Planeamento”, nas acções restritas, e ainda mais nas de carácter abrangente. Naquelas em que eventualmente se faz, rompe-se frequentemente algum elo da cadeia que levará à execução e seu sucesso.

É consentâneo que a Avaliação (do Planeamento e Execução) e o aperfeiçoamento da sua metodologia poderá dar um importante contributo a este nível, com consequente elevação do nível de saúde das populações. É crucial uma Avaliação correcta, independente e suficientemente exaustiva do desempenho do sistema, programas e projectos de saúde, que apure os resultados, impactos e eventuais “ganhos” obtidos, com identificação das limitações e obstáculos, com responsabilização dos intervenientes. Só assim se poderá, a todo o momento, reformar ou reformular as políticas e intervenções em saúde pública.

Qualquer reforma na saúde deve atentar e perspectivar a concretização maximizada e equilibrada dos seus objectivos: elevar o nível de saúde da população; melhorar a resposta em serviços (equidade); procurar a justiça na contribuição financeira. As reformas visam, precisamente, essa afinação e melhoramento.

Nesse sentido, surgem a Rede de Centros de Saúde de 3ª geração, a Rede de Cuidados Continuados, Hospitais com gestão privada empresarial. Partilham objectivos de simplificação do acesso, maior equidade, melhor articulação entre público e privado, em saudável e construtiva competitividade, sempre com vista à qualidade e serviço contemplando o interesse do cidadão.

Dentro da Qualidade, particulariza-se a “Segurança dos Doentes”. Pela sua verificação, visa-se a redução de efeitos negativos consequentes à intervenção pelos prestadores de cuidados de saúde. Para tal é necessária a notificação (sem punição mas também sem isenção ou imunidade), bem como a avaliação contínua e permanente, além duma revisitada formação e aprendizagem pelos profissionais de saúde.

Este aspecto é contemplado no mais recente nível de prevenção: a Prevenção Quaternária (*). Também chamada de Prevenção da Iatrogenia, de um modo geral, visa evitar os efeitos indesejáveis resultantes da hiper-medicalização dos utentes, as consequências de estudos diagnósticos e terapêuticas excessivamente invasivos, controlar e minimizar custos financeiros no sistema de saúde, melhorar a qualidade e aumentar a racionalidade do acto médico. Como suporte fundamental surge a Medicina baseada na evidência, investigação idónea e consciente, formação permanente dos profissionais, mas também capacitação e educação dos consumidores de serviços de saúde.

A formação e consciencialização dos cidadãos ou profissionais prestadores de cuidados de saúde, o avanço na investigação… bem como o sucesso da implementação das políticas, a articulação entre instituições e aproximação do pensamento e discurso entre governantes e técnicos, a execução dos programas, a informação, nunca se dará com êxito se tudo se passar aquém do pleno conhecimento e domínio da arte de comunicar.

Comunicação não é sinónimo de informação, e em saúde essa “nuance” é ainda mais significativa. Pretende-se que o conteúdo seja entendido e assimilado, para mudar comportamentos, para influenciar, para ter impacto! Será esse um veículo para que as escolhas e iniciativas individuais sejam conscientes, geradores de empowerment informado do cidadão, gerindo ele próprio os seus recursos e doseando os da comunidade, para os quais contribui.

A informação, seus sistemas e processos, têm também um incontornável relevo, sendo beneficiários (e tributários) da inovação científica e tecnológica. Dispor e garantir informação em tempo real, rigorosa e completa, é de sobremaneira importante para decidir e intervir, em saúde pública. Além disso, permite antecipar efeitos e acontecimentos futuros. É um dos alicerces a fortalecer no futuro, de modo a que se cumpra o novo paradigma da saúde Pública.

Efectivamente, almeja-se a implementação dum novo paradigma para a Saúde Pública. Que tome decisões baseadas no conhecimento actualizado; que faça gestão da informação relevante e, em função disso, gira e comunique o risco; que, definitivamente, identifique os problemas e as necessidades em saúde da população, que monitorize o seu estado e determinantes de saúde e avalie o impacto das intervenções realizadas; que faça investigação e vigilância epidemiológicas; em que aconteça a gestão dos programas e projectos planeados executados no âmbito da promoção e protecção da saúde.  

Labutar para o exercício e concretização da ideia de Promoção da Saúde (existente desde 1986, pela Carta de Ottawa) é um instituído objectivo da Saúde Pública, seja qual for o paradigma. Se os serviços de saúde e equidade no seu acesso são relevantes para obter “ganhos em saúde”, a maior contributo resulta do empreendimento individual na aquisição e manutenção de estilos de vida saudáveis, em interacção com os profissionais de saúde, as estruturas sociais, ambiente físico, meio cultural... entre outros determinantes de saúde.

Em termos ambientais, é cada vez mais custoso o equilíbrio entre o desenvolvimento das civilizações e o bem-estar e sustentabilidade das mesmas, a médio e longo prazo. Cada vez mais as intervenções humanas no Ambiente se dão a larga escala, com efeitos marcantes e sem ter como fito as consequências sobre gerações vindouras e os impactos sobre toda a vida no planeta. Em função desses cenários e suas consequências prováveis, dever-se-ão contemplar medidas preventivas e correctivas, ou minimizadoras, dos riscos e impactos esperados. Em Portugal, as ondas de calor (consequência do aquecimento global) têm sido responsáveis por excesso de morbilidade e mortalidade prematura, principalmente em grupos de risco (doentes crónicos, idades extremas, dependentes/acamados, etc.).

O Ambiente, as Migrações, as Doenças Transmissíveis, tal com outros assuntos, dizem respeito a todo o planeta, pelo que as políticas devem ser integradas e contextualizadas a nível global. Importa a união entre as nações, a colocação assumida do nosso país na agenda internacional, a interacção diligente ao nível da saúde pública e não só. O determinismo da globalização representa fontes de encargos mas também possibilidades de luta.

A agregação e federação, como um corpo único e vivo, unido na diversidade, está predestinada também desde os Descobrimentos. Depois de navegar águas mais ou menos conturbadas, os meridianos e coordenadas cruzam-se e concorrem mutuamente para um mesmo fim. Afinal, a terra é redonda, “Deus quis que a terra fosse toda uma”... e se “Deus quer”, se o “Homem sonha” então… a “Obra nasce”.

As caravelas para a unificação são, sem dúvida, aos Valores e a Ética porque tocam todos, ou a maioria, dos desafios do “nosso futuro”. Privilegio o Princípio da Responsabilidade. É fundamental que exista Responsabilidade: a nível internacional, nacional, regional e local; quer em termos  políticos, como técnico-científicos e sociais; em todos os profissionais mas também nos cidadãos… para que qualquer mudança seja bem sucedida.

É prioritário que ocorra a verificação dos princípios de “boa governação”, independentemente dos valores contemplados ou metas priorizadas na agenda política. As “regras do jogo”, transversais no tempo e no espaço, existem para se cumprir e fazer valer, visando-se a obtenção de bons resultados, em que todos ganham e se eleva o nível de saúde colectivo. Para exigir que se verifiquem, é importante que as instituições, intelectuais, comunidade em geral... sejam mais participativos e praticantes dos direitos e deveres que lhes assistem.

“ Todos somos responsáveis por todos” (Rose).

Ainda hoje, na Lusitana nação, os navegadores são poucos e têm que se fazer ao desconhecido e à aventura para angariar recursos noutras paragens, em novos mundos. Mas a sua “loucura” reluz em “esperanças”.

A maioria destas “esperanças” são reais e já vividas noutros países, há muito avistados.

A miragem vai chegando e ficando, com os ventos e as marés.

Falta cumpri-la.

“(…) Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!”

Fernando Pessoa, in Mensagem (Poema “O Infante”)

1 Autora: Ana Catarina Peixoto Rego Meireles

Trabalho realizado com base nas aulas e seminários do módulo de ISP, com apoio nos documentos disponíveis da plataforma e-learning (Curso de Especialização em Saúde Pública Escola Nacional de Saúde Pública)

Ana Catarina Meireles © Portal de Saúde Pública, 2007