Ecoética e o Principio da Responsabilidade de Hans Jonas

Aplicação à Saúde Pública 1

Apresentação (slides)

1. Introdução

2. Retrospectiva histórica

2.1  Pré-modernidade

2.2  Modernidade

2.3  Pós-modernidade

2.4  Novo milénio

3. Hans Jonas e a ecoética

3.1  Resumo biográfico

3.2  Novo paradigma ético: o "princípio da responsabilidade"

4. Saúde pública e ambiente

4.1  Saúde ambiental

4.2  Ambiente europeu

4.3  Que fazer na defesa do ambiente

4.4  Determinantes da agressão ambiental

4.5  Princípio da responsabilidade na saúde pública

5. Bibliografia

 

«Assim como os meus antepassados semearam para mim antes de eu nascer,

também eu semearei para aqueles que se seguirem a mim.»

Antigo texto hebraico

 

1. Introdução

Durante toda a História da Humanidade até à época medieval, a Natureza afigurou-se como duradoira e permanente, que sofria ciclos e alterações mas era sempre capaz de recuperar sem dificuldade, inclusivamente das pequenas agressões que o Homem lhe causava com as suas localizadas intervenções.

Esta concepção mudou radicalmente com a ciência moderna e a técnica dela derivada. O Homem passou a constituir, de facto, uma ameaça para a continuidade da Vida na Terra. Não só pode acabar com a sua existência como também pode alterar a essência do Homem e desfigurá-la mediante diversas manipulações.

Tudo isto representa uma mutação tal no campo da acção humana que nenhuma ética anterior se encontra à altura dos desafios do presente. Torna-se necessária uma nova ética: uma ética orientada para o futuro. Tal não significa que seja concebida para que a pratiquem apenas “os homens de amanhã”. Ao contrário, trata-se duma ética que deve reger precisamente os “homens de hoje” por forma a garantir que haja “os homens do futuro”.

Hans Jonas dedicou-se a esta problemática, tendo proposto uma filosofia baseada no Princípio da Responsabilidade, apresentando um novo paradigma ético, vocacionado para o nível colectivo e para acção dos agentes político-sociais, grandes responsáveis e contribuintes para “regrar e orientar da acção humana”, “uma ética actual que se preocupa com o futuro, que pretende proteger os nossos descendentes das consequências das nossas acções presentes”.

Este documento de reflexão circunscreve-se à Natureza Ambiental extra-humana e à Ecologia no sentido referente às relações entre o comportamento humano e as consequências da intervenção sobre o Ambiente Natural.

Tal se deve ao facto de se pretender analisar de que forma o pensamento de Hans Jonas se pode aplicar e constituir útil com instrumento de pensamento e acção na Saúde Pública, designadamente, no âmbito da Saúde Ambiental.

O Ambiente Natural é fundamental no garante da saúde das comunidades, sendo o objectivo último da Saúde Pública trabalhar de modo que, para além de sobreviver, as populações vivam com qualidade de vida, bem-estar… enfim, saúde plena.

Para tal há que partir para a elaboração, implementação e avaliação de políticas e planos de acção onde indicações éticas e orientações de pensamento baseados na Responsabilidade deverão ser assumidos e praticados.

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2. Retrospectiva Histórica

A cada período da história, seu contexto político, social, cultural, científico e filosófico. Convém revisitá-los para nos revisitarmos enquanto Humanidade. Eis o caminho da compreensão ou procura do (nosso) sentido.

2.1 Pré-Modernidade

A civilização e intervenção na Natureza caminham juntas desde sempre. Contudo, não obstante a sua “ilimitada capacidade de invenção”, o Homem não causava dano algum quando se “atrevia em investidas nos reinos maiores do mar, céu e terra”. A Natureza mantinha-se intacta.

A abordagem do mundo extra-humano era eticamente neutro quer a nível de objecto (a acção afectava escassamente a ordem da Natureza permanente), quer a nível de sujeito da acção (acção empreendida devia-se à necessidade do homem e não com vista ao progresso pelo progresso, com esforço e compromisso da Humanidade). O bem e o mal residiam nas proximidades da acção, na sua praxis e seu alcance imediato. O longo curso das consequências devia-se à causalidade, ao destino ou Providência. Em suma, a actuação sobre os objectos não humanos não constituía um âmbito de relevância ética.

Outrossim, de relevância ética, era o envolvimento do homem com o homem (ética antropocêntrica), no momento e contexto ou habitat social. Assim o exigia o “artefacto da cidade” (morada construída para a sua própria Humanidade). O “artefacto social” aumentou tensões no relacionamento interpessoal, pelo que a inteligência e engenho necessitaram de se associar à política, moral e ética.

O braço-curto de acção do poder humano não exigia grande capacidade preditiva. A ética debruçava-se sobre o aqui e o agora, com as situações que se apresentam entre os cidadãos, com as repetidas e típicas situações da vida pública e privada: “ética próxima”. O homem bom era o que agia com virtude e sabedoria, segundo os preceitos da honra, justiça, caridade.

2.2 Modernidade

A ciência moderna nasceu nos séculos XVI-XVII e na Europa. Ao procurar factores culturais, ideológicos, sociais, económicos que determinaram esta emergência, assume-se que o cunho da sociedade e do tempo exigia mais que uma ciência “desinteressada e ociosa”, como acontecia até então. Não só a especulação devia desembocar na prática, como o critério do saber tornava-se por si só operativo.

Prevalecia o sentido utilitarista e a perspectiva de obtenção de tecnologia progressivamente avançada. Procuravam-se leis universais demonstráveis e um pensamento assente na razão.

A essa altura, a relação entre ciência e filosofia teve sua primeira crise. Incontestavelmente, tratou-se duma revolução de atitude e pensamento, sendo que a marca desse ponto de viragem foi tão determinante que a mentalidade desse século ainda se manifesta fortemente nos dias de hoje.

Seguiu-se o Século das Luzes ou período do Iluminismo. Deu-se a emancipação da ciência. O racionalismo e o empirismo do séc. XVII davam o substrato filosófico para as reflexões do Iluminismo.

A Humanidade aprendera como era o universo. Agora descobrira que não precisava de tutores para pensar e, desde então, todo o pensamento humano partia da dúvida para buscar a Razão que os explicasse (Dúvida Metódica).

O pensamento passou a ser direccionado e a busca pelo conhecimento seria fragmentada de acordo com os mais diversos interesses. O conhecimento começa a democratizar-se e as enciclopédias serviam de documentos para organizar as últimas descobertas e de suporte para quem não tinha mais tempo a perder com inverdades.

Os pensadores do séc. XVIII insurgiam-se contra as “trevas” da ignorância, da superstição e do despotismo. No plano político, defendiam-se as liberdades individuais e os direitos do cidadão contra o autoritarismo e abuso de poder.

Com tantas descobertas científicas nas áreas da física, matemática e química, foi possível acontecer a Revolução Industrial (na Inglaterra, séc. XIX). É polémico dizer quem dependeu de quem: se a ciência da indústria, se a indústria da ciência. Talvez o mais sensato seja uma relação de reciprocidade.

Iniciou-se então o exercício pleno da autonomia científica e o grande reinado das máquinas. A indústria moderna concentrou e multiplicou os meios de produção para acelerar o rendimento e movimentar as máquinas, que substituíram a força muscular.

Surgiram, simultaneamente, novas questões resultantes do crescimento industrial, relacionadas com o impacto ambiental (poluição, exploração das fontes energéticas, criação de extensas áreas agrícolas, crescente urbanização, entre outras) e ao impacto social (exploração do proletariado, sobredimensionamento das cidades, acumulação população nos subúrbios das urbes, aumento das desigualdades sociais, novas problemas de saúde pública, entre outros).

Logicamente, novas correntes filosóficas se insurgem, inspiradas por todas estas novas conjunturas e problemáticas.

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2.3 Pós-Modernidade

Caminhando para o séc. XX, a Humanidade tornou-se testemunha constante das maravilhas da ciência. Acelerou-se o processo das descobertas e invenções, e estas cada vez mais passaram a fazer parte da vida de cada indivíduo.

Na física, destacam-se as grandes descobertas acerca do átomo e suas estruturas (a era atómica), que permitiu chegar à energia nuclear e à bomba atómica.

Na área de biologia, a determinação da estrutura das proteínas, estudo da insulina e hemoglobina, estabelecimento do código genético e da estrutura molecular do DNA, sua manipulação e transferência, entre outras descobertas, foram cruciais para o surgimento da chamada biotecnologia moderna.

Como resultado das inovações científicas desenvolvidas durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as da física quântica e electrónica miniaturizada, as nossas escolhas tecnológicas envolvem consequências que se repercutirão durante centenas de anos e, por isso, muitas das gerações vindouras.

Aquisições mais recentes como o computador, a internet, a clonagem, as missões espaciais… entre outras, permitem suspeitar que já nada é impossível à Humanidade!

É inegável que a ciência e a tecnologia grandes conquistas e mais-valias para o Homem.

Salientem-se: a resistência às agressões naturais, com conforto e comodidade mediante construções robustas e sofisticadas; abundância e acessibilidade a alimentos e outros bens de consumo; informação e comunicação a nível planetária e global, através das telecomunicações, sistemas de informação, redes de transportes, etc.

Contudo, a Natureza tem sido tão “convocada” para responder às solicitações humanas que começou a esgotar-se progressivamente, constituindo-se o séc. XX como o auge de actuação e sofrimento da Natureza.

Recordem-se: as experiências nucleares e uso de bombas atómicas a da Segunda Grande Guerra; detritos nucleares das centrais nucleares (exemplo de Chernobil); a poluição maciça do ar; a destruição da camada do ozono, com consequente efeito estufa e climáticas, degelo dos glaciares, alteração das correntes oceânicas e pressão sobre os ecossistemas; a desflorestação dos “pulmões arbóreos” do planeta; sobre-exploração dos solos e reservas energéticas naturais; contaminação das águas; desaparecimento definitivo de espécies animais, vegetais e outras; manipulação e adulteração dos alimentos (de origem vegetal e animal) por acção transgénica, pesticidas, antibióticos, aditivos industriais; construção de ambientes vitais cada vez mais artificiais, principalmente nas grandes cidades.

A nossa acção introduziu a ambivalência e até desfiguração!

Nada tem tanto êxito como o êxito, nada nos seduz e atrai tanto como ele. Este facto gerou um efeito de feed-back positivo do “mundo artificial” sobre o “homo faber”. O êxito de atingir o máximo domínio sobre as coisas e sobre os próprios homens é visto como a realização máxima do destino do Homem: “homo faber, mais que homo sapiens”… como se essa fosse a missão da Humanidade.

2.4 Novo Milénio

Chegado o novo milénio, deparamo-nos com uma complexa conjuntura. A civilização atingiu o ponto da sua evolução em que todas as descobertas herdadas, principalmente as mais recentes, dada a sua potencialidade, constituem um desafio ao entendimento e gestão.

A Humanidade vive a “Adolescência Tecnológica”.

O potencial de intervenção técnico-científica representa uma tremenda vulnerabilidade da Natureza. A Natureza é o maior objecto da acção humana e as suas consequências vão muito para além da proximidade espacial e temporal. Além disso, há o risco da irreversibilidade das consequências ou, pelo menos, o risco de efeito cumulativo.

O avanço contínuo e veloz da ciência e tecnologia conduzem a mudanças permanentes das condições a avaliar e rapidamente se reciclam e inviabilizam as experiências e conhecimentos anteriores. De modo decorrente e associado, ocorre a mudança do conceito do próprio Homem e cariz da sua acção.

Semelhante à experiência universal das crianças que transitam para a idade adulta, através desta “adolescência”, temos de encontrar uma maneira de orientar as mudanças das nossas vidas e sobreviver à nossa transição. Como é próprio da puberdade, avolumam-se os sentimentos de “invulnerabilidade” e “indestrutibilidade”, o que conduz frequentemente à negligência e ao desafio dos limites da autoridade e da razão.

Logo, face a um tempo caracterizado por desorientação e dúvida, dever-se-á seguir ou coexistir um tempo de reflexão, com subsequente adaptação. Nesse contexto, surge a necessidade e pertinência de restabelecer a ponte entre filosofia e a ciência. A Humanidade tem novas responsabilidades sobre as quais deverá reflectir eticamente.

Nesse sentido, apresentar-se-á o filósofo Hans Jonas e sua tese relativamente a esta problemática.

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3. Hans Jonas e a Ecoética

“eroe inquieto della filosofia del novecento”

L’Unitá, 5 de Setembro de 1991

 

3.1 Resumo Biográfico

Nasceu em 1903, em Mönchengladback, na Alemanha, no seu de família e comunidade judaicas.

Teve uma intensa vida intelectual, que segundo o próprio, teve o seu primeiro grande impulso em 1921, ano em que frequentando a Universidade de Freiburg conhece e contacta com Martin Heidegger, a quem se refere como sendo seu mentor filosófico.

Em 1924, Heidegger transfere-se para a Universidade de Marburg e Hans Jonas acompanha-o. Aí conhece Rudolf Bultmann e sob sua orientação elabora uma tese sobre a gnose no cristianismo primitivo (1931).

Em 1934, teve de abandonar a Alemanha devido à ascensão do nazismo ao poder. Foi para Israel, onde se integrou numa brigada judaica de auto-defesa, onde permanece até 1949. Durante a Segunda Guerra Mundial alistou-se no exército britânico na luta contra o nazismo. A proximidade com a realidade da morte gerou-lhe a preocupação com a vida. Era preciso repensar o ideal de vida humana, e dedicou-se a tal façanha com grande determinação.

Em 1945, volta à Alemanha e toma conhecimento que os pais haviam morrido (a mãe, no campo de concentração de Auschwitz). Em 1949, vai para o Canadá, leccionando nas Universidades de Montreal e Otawa e em 1955, transfere-se para os EUA.

Em 1966, ocorre o segundo grande marco da vida intelectual de Jonas, com a publicação de “O fenómeno da vida: rumo a uma biologia filosófica”. Nesta obra, estabelece os parâmetros duma filosofia da biologia mostrando o alcance filosófico dos temas de interesse da biologia e reduz os extremos do idealismo irreal e do limitado materialismo. Explora, ainda, o erro de se isolar o homem do resto da natureza: “a continuidade da mente com o organismo, do organismo com a natureza, a ética torna-se parte da filosofia da natureza (…). Somente uma ética fundada na amplitude do ser pode ter significado”.

Como derivação lógica do período anterior, em 1979, publica “O Princípio da responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica”. Da sua vasta obra, esta foi a que o consagrou indelevelmente. Nunca antes, em nenhum período da História, a Humanidade correu tanto risco de sobrevivência. Logo, também nunca se concebeu nenhuma ética que tivesse em consideração as condições globais da vida humana, o futuro longínquo ou o risco de autodestruição. Assim, Hans Jonas apresenta um novo paradigma, de princípios, direitos e deveres, em reacção a um desafio premente, para o qual ainda não tinha sido pensada qualquer metafísica ontológica.

Faleceu em 1993, nos EUA, tendo sido um homem sempre activo até ao fim dos seus dias.

3.2 Novo Paradigma Ético: O "Princípio da Responsabilidade"

As bombas atómicas e suas consequências foram, no entender de Hans Jonas, o que “pôs em marcha o pensamento em direcção a um novo tipo de questionamento, amadurecido pelo perigo que representa para nós próprios o nosso poder, o poder do homem sobre a Natureza”. Percebeu também que, além do choque agudo sofrido, se iniciaria uma crise crónica e gradual decorrente do perigo crescente dos riscos do progresso da tecnociência e seu uso perverso.

Kant dizia: “Age de tal modo que possas querer também que a tua máxima se converta em lei universal”. O “poder querer” pressupõe não uma moral mas que seres dotados de razão e capacidade de acção a pensem sem auto-contradição, logo, com perfeita concordância e harmonia lógica, podendo ser aplicada universalmente à comunidade.

Hans Jonas, tendo Kant por referência, apresenta imperativos para o novo tipo de acções em reflexão:

“Age de tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência duma vida humana autêntica na Terra”

ou

“Age de tal modo que os efeitos da tua acção não sejam destrutivos para a futura possibilidade dessa Vida”

ou

“ Inclui na tua eleição presente, como objecto também do teu querer, a futura integridade do Homem”

ou

“Não ponhas em perigo as condições da continuidade indefinida da Humanidade na Terra”

Aqui também não há contradição racional: “pode-se querer” o bem presente sacrificando o futuro; “pode-se querer” o próprio fim… mas no quarto imperativo propõe-se e apresenta-se que: não nos é tirada a legitimidade de arriscar a própria vida mas não nos é lícito arriscar a vida da Humanidade!

Mas será que existe uma obrigação para com aqueles que ainda não existem e, não existindo, nem sequer podem exigir ou têm direito a exigir uma existência?!

Não é fácil justificar teoricamente e talvez até seja impossível fazê-lo sem recurso à metafísica.

Porquê “homens no futuro”? Na visão da ética clássica e antropocêntrica, temos o interesse (e obrigação) moral de defesa e manutenção da espécie humana, o que remete para teses éticas indemonstráveis: no futuro deverá haver sempre um mundo apto para que o homem o habite e que a humanidade sempre seja digna desse nome; a existência dum mundo é melhor que a sua inexistência. Parte-se, então, deste axioma.

Voltando ao imperativo categórico de Kant, sendo dirigido ao indivíduo e ao instantâneo (visão antropocêntrica), este convida a pensar no que poderia acontecer se a “máxima” da nossa acção actual se convertesse em princípio de uma legislação universal. Mas este “novo tipo” de acções e suas consequências não estão contempladas. Além disso, o princípio não é o da responsabilidade objectiva mas subjectiva e hipotética.

Hans Jonas propõe como “guia de reflexão ética” o próprio perigo que se prevê, possíveis desfechos no futuro, antecipação do impacto planetário, consequência na Humanidade, entre outros cenários, que podem orientar os princípios éticos e novos deveres no novo poder. Chama-lhe a “heurística do temor”, isto é, só a previsão da desfiguração e auto-destruição do Homem nos ajuda a reflectir sobre o que há que preservar e priorizar no Homem, face a tais perigos”, e assumir uma posição ou decisão sobre o que se “possa querer”.

Apenas sabemos o que está em jogo quando sabemos quem está em jogo! E o que está em jogo é: o destino do homem; o conceito que possuímos dele; a sobrevivência física da Humanidade e do planeta; a integridade da sua essência. Tal nos (re)conduzirá ao conceito de responsabilidade, elemento central nesta nova ética.

Só porque temos a capacidade de alterar os modelos atmosféricos em grandes regiões da Terra e criar novas formas de vida, será que temos o direito de fazer tais coisas?

O problema não é o conhecimento por si só, é antes a aplicação que se lhe dá! Logo, a questão que subsiste para o futuro não tem tanto a ver com o desenvolvimento das próprias tecnologias, mas sim com a forma sábia de implementa-las nas nossas vidas.

Logo, esta nova ética, além de responsabilidade, exige, sabedoria, conhecimento e humildade.

A inevitável dimensão universal da tecnologia moderna faz com que se reduza cada vez mais a distância saudável entre os desejos quotidianos e os fins últimos, entre as ocasiões de exercer a prudência usual e de exercer uma sabedoria iluminada. Dado que actualmente vivemos sob um utopismo incorporado em nós, automático, exige-se uma maior sabedoria na decisão e acção.

Por outro lado, e assumindo que não se detém o saber preditivo, reconhece-se a nossa ignorância (apesar de muitas especulações e algumas certezas) acerca das consequências das acções humanas, designadamente, do foro ético. Reconhece-se, ainda, a possível irreversibilidade. Assim, é exigido conhecimento (know-how com apoio científico, inclusivamente) pois a nova ética deverá ser uma “ética informada” e exigente quanto às suas fontes. É recomendado que o novo paradigma integre a vigilância do nosso desmesurado poder, sua monitorização e actualização de conhecimentos… só assim procederá a orientações dotadas de propriedade e adequação.

Acresce-se, por fim, a solicitação duma nova classe de humildade, não devida à nossa insignificância (como no passado) mas devido à excessiva magnitude do poder da técnica ao serviço do Homem, ou seja, desproporção entre capacidade de fazer relativamente à capacidade de prever e valorizar ou julgar.

A ignorância das consequências últimas será em si mesma uma razão suficiente para a moderação responsável, que implicará o exercício da sabedoria e a necessidade da humildade.

E o bem da Natureza de per-si? A responsabilidade do Homem não deverá ir além de si próprio, sob pena de se tratar de mero interesse utilitário? Obviamente que sim! Estando a Natureza à mercê do Homem e passível de ser alterada radicalmente, este passa a manter com ela uma relação também de responsabilidade. Daí que a nova ética de Hans Jonas inclua a Natureza e a Ecologia — Ecoética.

O desenvolvimento do poder científico-tecnológico moderno modificou o carácter da acção humana. O impacto é a nível colectivo e não individual, global e não local, portanto com magnitude incomparável. Logo, estamos perante um cenário de âmbito colectivo, sob a forma de política pública. Do mesmo modo, também a política se vê mudada porque se mudou a essência da acção humana, muda a essência básica da política.

Surge a dúvida sobre a capacidade dos governos representativos para responder adequadamente com os seus princípios e procedimentos habituais a estes novos desafios e exigências. Isto porque o que, regra geral, vem a prevalecer são os “interesses presentes”; é perante o “presente” que se presta contas e não mediante o “abstracto”; o futuro não está representado em nenhum grupo; o que não existe não é um lobby e os não-nascidos não exercem poder; os vindouros não têm peso na decisão actual e no futuro não será feita a cobrança porque nós já não estaremos cá.

Então que força deve representar o futuro no presente? Eis o que é preciso estabelecer no sistema de deveres e direitos.

O novo imperativo de Hans Jonas dirige-se essencialmente à política pública e tem em vista o prazo longínquo. Apela a outro tipo de concordância: não à das acções no imediato mas à dos efeitos últimos da continuidade da actividade humana, no futuro. A universalização não é hipotética (se eu, se nós…) mas antes remetida ao Todo colectivo, atendendo à medida real da sua concretização.

Efectivamente, estas teorias que apontam para o futuro, exigem aplicação no presente (tempo fundamental para decidir o futuro nos seus vários prazos). São protagonistas fundamentais os legisladores e governantes. A aspiração do legislador deverá ser o estabelecimento duma forma política viável, e a prova da sua viabilidade radica na sua duração – inalterada quanto possível – deste que foi criada. O melhor Estado é também aquele que promove e zela o melhor para o futuro.

Se atendermos ao facto que outros sonhos utópicos da humanidade se vieram a concretizar, e considerando o que está em causa no Princípio da Responsabilidade, esta ética acaba por se afigurar até modesta!

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4. Saúde Pública e Ambiente

4.1 Saúde Ambiental

Saúde Pública pode ser definida de múltiplas formas, essencialmente devido ao facto de ser difícil defini-la. Um possível enunciado é:

Ciência multidisciplinar, arte complexa, de prevenir a doença, prolongar a vida e promover a saúde da/na comunidade, mediante um esforço conjunto e articulado dos seus vários actores e recursos de que dispõem. 

As suas acções têm como alvo a doença, a saúde e seus determinantes, nas comunidades. O Ambiente é um determinante importante da saúde e da doença das populações, entendendo-se que este é “tudo o que envolve o Homem no decurso da sua existência e que com ele interfere”.

Devem considerar-se as suas duas grandes divisões: Ambiente Biofísico e Ambiente Psicossocial.

As principais componentes do Ambiente Biofísico, nível ecológico considerado nesta dissertação e alvo de acção Saúde Pública na vertente Saúde Ambiental, são: Água, Alimentos, Ar, Biota, Energia, Habitat e Solo. 

A Saúde Pública, com missão de prevenção da doença, do prolongamento da vida e da promoção da Saúde através de esforços organizados da Sociedade, entende que o resultante destes esforços, em termos de Saúde Ambiental, deverá ser o “controlo de todos os factores do Ambiente que exerçam, ou possam exercer, efeitos prejudiciais ao desenvolvimento pleno, à Saúde ou à sobrevivência da Humanidade” (OMS).

A Saúde Pública exerce a protecção e promoção do Ambiente, essencialmente mediante políticas e quadros legislativos, nacionais ou internacionais, pois só com planos de acção transversais, consertados e efectivos se podem atingir objectivos desta natureza.

Efectivamente, a Saúde Ambiental não pode ser desintegrada das políticas e estratégias de acção aos níveis internacional, existindo aspectos institucionais e legais que associam e comprometem as nações. Exemplos desses tratados ou documentos internacionais:

As Metas da Região Europeia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o Século XXI (Health 21);

Programa das Nações Unidas “Millennium Development Goals”;

“Cartas” Europeias de Ambiente e Saúde (Frankfurt, Helsínquia, Londres e Budapeste);

VI Programa da União Europeia para o Ambiente (2001 – 2010).

4.2 Ambiente Europeu

Em 2005, a Agência Europeia do Ambiente (AEA), apresentou o relatório "O Ambiente na Europa – Situação Actual e Perspectivas", onde incluiu uma avaliação global e integrada do ambiente europeu.

No relatório em questão, é declarado, que:

As fontes difusas de poluição com origem nos sectores económicos constituem agora o maior desafio.

O uso do solo, consumo e padrões de comércio são as maiores ameaças para os progressos na melhoria do ambiente (a "pegada" do nosso consumo e da actividade comercial é mais de duas vezes superior à nossa capacidade biológica).

A expansão urbana está a aumentar de forma alarmante a pressão sobre os ecossistemas (por ex., zonas húmidas) próximos das zonas urbanas.

O desenvolvimento do turismo é um factor adicional de pressão sobre as zonas costeiras, já afectadas.

As alterações climáticas são uma realidade. Neste século, as temperaturas na Europa poderão aumentar entre 2º e 6 ºC (contra os 0,95 °C do século passado e uma média global de 0,7 °C) e prevê-se como consequências: escassez de água, condições climáticas extremas, migrações de espécies marinhas e perdas económicas. Os objectivos a curto prazo de Quioto podem ser alcançados, mas os objectivos a médio prazo (até 2020 e mais) serão mais difíceis de atingir.

Os cidadãos europeus são mais saudáveis, mas continuam expostos a poluentes. A poluição atmosférica continua a provocar problemas de saúde em muitas cidades (partículas e ozono). A exposição a produtos químicos afecta as pessoas na Europa e não só. Há substâncias provenientes do ar poluído da Europa detectados no sangue de habitantes do Árctico.

Prevê-se o esgotamento dos nossos recursos naturais. A sobrepesca, em conjunto com as alterações climáticas, constitui uma ameaça para os ecossistemas marinhos. O solo da Europa está ameaçado pela erosão, impermeabilização, contaminação e salinização.

E muitos outros problemas e défices são apontados no relatório de avaliação da AEA.

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4.3 Defesa do Ambiente

No Relatório da AEA são apontadas estratégias de acção.

As reformas fiscais podem contribuir para um ambiente mais sustentável e saudável. Uma mudança gradual da incidência dos impostos sobre os “recursos bons” (como os investimentos e a mão-de-obra) para uma incidência nos “recursos maus” (como a poluição e a utilização ineficiente) poderão ajudar também a integrar os custos ambientais nos preços dos serviços e dos produtos.

Os responsáveis pela elaboração das políticas poderão igualmente conceber medidas de acompanhamento destinadas a assegurar a equidade fiscal dos impostos ambientais. Estudos constataram que os impostos sobre a electricidade afectam particularmente as camadas mais desfavorecidas da população, enquanto que os impostos sobre os transportes são relativamente benignos uma vez que estas têm menos acesso aos meios privados de transporte.

Políticas coerentes de longo prazo podem encorajar a reestruturação de incentivos baseados em instrumentos financeiros, formação de preços e impostos que serão necessários para reduzir os custos crescentes e cada vez mais evidentes da utilização dos recursos naturais do planeta. Os ganhos resultantes em termos de eco-eficiência poderão igualmente ajudar a melhorar a competitividade da economia europeia.

Apesar de tudo, existem obstáculos substanciais a uma concretização eficaz e eficiente das políticas a todos os níveis de governação da União Europeia. Estudos realizados pela AEA indicam que as condições institucionais e de cidadania podem ser tão importantes como a concepção das políticas propriamente ditas.

Este inquérito também demonstra que, com efeito, quer os governos, quer os cidadãos têm de fazer mais para que o desenvolvimento económico seja compatível com as capacidades de sustentação da Terra.

A Europa está bem posicionada para liderar o caminho de criação duma sociedade mais inteligente, mais criativa, mais limpa, mais competitiva e mais segura.

4.4 Determinantes da Agressão Ambiental

A partir do relatório da AEA constata-se que os factores económicos, a procura de “qualidade de vida” e de equidade no acesso a serviços são os determinantes de maior relevo na agressão ambiental. São esses factores que conduzem as sociedades a produzir mais poluição industrial, a aumentar o seu consumo comercial, a proliferar a urbanização, a estimular o turismo… que por sua vez gerarão alterações climáticas, esgotamento das reservas energéticas, alteração dos ecossistemas, extinção de espécies, etc. Por este motivo se constata que a questão é bem mais gravosa e com envolvência bem mais ampla que a existência e acessibilidade às ciências e às tecnologias. Se na Modernidade, e desde então até a um passado recente, a ciência foi o impulsionador e motivador de exploração ambiental, no momento actual o desafio do milénio é outro e bem maior. É a expansão industrial, a globalização económica, ou o mero consumo local, assente numa mentalidade consumista, obsessiva e obcecada pelo poder, que visa o lucro independentemente de outros factores e valores… que compromete o crescimento ou vivência sustentada da Humanidade.

Não é a ciência e a tecnologia que domina o Homem mas antes a sua ambição de poder económico-financeiro. Este sim determina o uso do conhecimento e necessita de ser frenado pela responsabilidade. A tecnociência pode até funcionar como aliada no alerta, consciencialização e reversão ou controlo das agressões ao Ambiente!

Pelos estudos internacionais, assume-se que é possível controlar os consumos e suas consequências mas são necessárias medidas coerentes a longo prazo, sustentadas e mantidas. A legislação, em matéria de Ambiente, funciona quando adequadamente aplicada. Falta implementar e garantir que o é efectiva e eficientemente.

4.5 "Princípio da Responsabilidade" na Saúde Pública

Constata-se que existe consciência filosófica que une cientistas, legisladores e planeadores governamentais. Além disso, as leis e estratégias, métodos e processos para intervir na defesa do Ambiente, e corolariamente da saúde das populações, existem e sabe-se que produzem resultados quando aplicados.

Logo, a implementação das leis e execução dos planos de acção traçados são os problemas “major”. Aí sim, quebra-se a cadeia de intervenção. Aí falha a responsabilidade da sua concretização, da aplicação real para minimização dos problemas para os quais foram concebidos as normas e os recursos.

Aí, Hans Jonas e seu pensamento surgem como inspiradores e esperança de se constituir como alavanca impulsionadora no sentido de reverter este ciclo de resignação e apatia, de negligência e desarticulação… enfim, de irresponsabilidade.

A importância e adequação desta ética é tal que se vê projectada e muito útil na génese das soluções. São os profissionais responsáveis (da ciência, da governação, do planeamento, etc) que preferencialmente deverão reconhecer a premência destes assuntos ambientais e de saúde pública. São eles que, desde logo, se deverão articular e procurar a aproximação entre a legitimidade política e a legitimidade técnica. São eles que promoverão a formação de equipas, organização de programas, instituição de competências institucionais, operacionalização no terreno, etc., para desencadear a implementação e fazer do produto filosófico-político e técnico-científico uma consequência real, avaliável e bem sucedida.

Talvez por mútuo desconhecimento ou desarticulação, os valores e ideologias partilhados pelos filósofos e pelos agentes promotores do ambiente e da saúde pública raramente se cruzam e comunicam. Todavia, a força de cada um pode surgir da associação de esforços e a confluência de energias-filosofia ver-se-ia protagonizada e consequente; a saúde pública e a saúde ambiental ver-se-iam reforçadas nos seus recurso e agentes promotores, que por natureza e vocação se inter-articulam e potenciam.

Que o verde da Ecologia seja referência de ideal e fonte de esperança.

A Natureza impele e chama a si.

“Verde dual”

A Responsabilidade recebe-se e incute-se.

A Responsabilidade é verde!

 

 

 

 

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2.1 2.2 2.3 2.4 3.1 3.2 4.1 4.2 4.3 4.4

Bibliografia

Braden, Gregg. O Código de deus – o segredo do nosso passado, a promessa do nosso futuro. 1ªed. Cruz Quebrada: estrelapolar; 2006.

Conferência sobre Ambiente e Saúde. Apresentação powerpoint para os “Cursos de Mestrado e de Especialização. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública (UNL), 2006.

Cordon, J.M.Navarro; Martinez, Tomas Calvo. História da filosofia. Volumes 2 e 3. Lisboa: Edições 70; 1998.

Imperatori, Emílio. Mais de 1001 conceitos para melhorar a qualidade dos serviços de saúde - glossário. Lisboa: Edinova; 1999.

Jonas, Hans. El princípio de responsabilidad – ensayo de una ética para la civilizatión tecnológica. 2ªed. España: Herder; 2004.

O ambiente na Europa - Situação actual e perspectivas 2005. Apresentação powerpoint para os “Cursos de Mestrado e de Especialização. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública (UNL), 2006.

Siqueira, José Eduardo (org.) e tal. Ética, ciência e responsabilidade. São Paulo, Brasil: Edições Loyola; 2005.

Renaud, Carmelo Rosa, M.I.; “Ética e ecologia”, em Cadernos de Bioética 2, Coimbra, Ed. Do CEB, 1990.

1 Autora: Ana Catarina Peixoto Rego Meireles

Trabalho realizado no âmbito da Especialização em Antropologia e Saúde, Módulo de Antropologia Filosófica Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa

Ana Catarina Meireles © Portal de Saúde Pública, 2008