Cuidados Paliativos... e seu Triângulo de Excelência 1

Os avanços técnico-científicos no âmbito das ciências da saúde contribuíram decisivamente para a diminuição da doença e da morte nas populações. Todavia, se aumentou a esperança média de vida dos cidadãos dos países industrializados, não é totalmente verdade que se tenha passado a “morrer melhor”. Ao invés, o enfoque na procura da cura para todas as doenças tem contribuído para a crescente cultura de “negação da morte” pelos profissionais de saúde (e pela sociedade em geral!), que encara o fim de vida − afinal, inevitável − como um fracasso e frustração a evitar.

Esta mentalidade tem ainda fomentado excessos na intervenção médica - suscitando sérias questões éticas -, bem como contribuído para o ténue investimento noutras intervenções em saúde que, não tendo intuito de garantir a cura, promovem uma vivência mais digna da doença.

Já no séc. XIX (senão antes) era conhecida a existência de grupos civis e religiosos que se dedicavam ao cuidado dos doentes “moribundos”. Porém, é na década de 60 do século passado, na Inglaterra e nos EUA, que surge uma reacção a esta tendência de desumanização da medicina moderna. Nasceu, assim, o movimento precursor dos cuidados paliativos, em defesa da necessidade de prestação de cuidados cientificamente rigorosos e de qualidade, também, às pessoas com doenças incuráveis, progressivas e avançadas. Nas décadas de 70 e 80, os cuidados paliativos e os cuidados curativos eram ainda vistos de modo quase antagónico, ou seja, os paliativos vinham depois dos curativos e eram destinados aos doentes em que já não havia nada a fazer. Mais recentemente também essa visão foi remodelada, entendendo-se que não são só os doentes incuráveis que devem receber cuidados paliativos e que estes cuidados englobam muito mais que a simples assistência clínica.

Cuidados Paliativos − o que são?

“Cuidados bio-psico-sociais”

Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (2002), entende-se que os cuidados paliativos são “uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes, e suas famílias, que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, como a dor, mas também dos psicossociais e espirituais.”

Tratando-se, essencialmente, de garantir bem-estar e qualidade de vida, estamos perante algo bastante amplo e até subjectivo. Porém, a maioria dos doentes destaca como queixas mais prementes a dor, a incapacidade, a dependência, as questões espirituais e religiosas, e o impacto familiar de várias ordens (emocional, financeiro, profissional, etc.).

Apesar das situações prioritárias continuarem a ser as doenças graves e em fases terminais (especialmente o cancro), a introdução dos cuidados paliativos não depende do diagnóstico ou do prognóstico da doença. Assim, poderão ser alvo de paliação os doentes com: neoplasias malignas; insuficiências avançadas de órgão (cardíaca, renal, hepática, respiratória, etc.); SIDA; doenças neurológicas degenerativas; entre outros.

Este tipo de cuidados pode ser necessário mesmo em fases precoces (se acaso existe desde logo um intenso sofrimento), devendo acompanhar os tratamentos de combate à doença e prolongar-se mesmo quando se atinge a fase de doença incurável.

Cuidados Paliativos − quem os recebe?

“Doentes − Familiares − Profissionais de saúde”

Segundo o que se postula como sendo o ideal, as necessidades de paliação deverão ser equacionadas a três níveis: doentes, familiares (ou cuidadores informais) e profissionais de saúde (ou cuidadores formais).

Nos cuidados paliativos dever-se-á, antes de mais, atender “aos doentes” e não “às doenças”, como foi dito anteriormente. Mas se os doentes são a prioridade na prestação, estes devem ser sempre equacionados atendendo ao núcleo familiar, isto é, a unidade de recepção de cuidados deverá ser sempre o binómio doente-família. Isto porque cada doente, na sua individualidade irrepetível, com uma combinação própria de capacidades, valores, crenças, necessidades e problemas, deverá ser compreendido e analisado no seu meio e em total dignidade. O seu espaço afectivo e rede social são fundamentais na promoção do seu bem-estar e para obter sucesso na actuação nos cuidados paliativos. Por outro lado, o agregado familiar enquanto grupo de relação afectiva do doente, dá um apoio primordial nos cuidados e sofre o impacto da doença no seu seio. Por conseguinte, a família deverá ser assistida até para além do fim de vida do doente, sendo auxiliados no luto.

Conviver ou cuidar de uma pessoa com doença grave e/ou em sofrimento acarreta várias consequências, para as quais raramente as encontram apoio e solução. Além da carga emocional, há as dificuldades no saber cuidar (na simples de alimentação, higiene do doente, aspiração de secreções, administração de medicação…), os encargos económicos (que tantas vezes agrava com a necessidades de deixar o emprego para poder assistir o familiar doente), entre outros.

No que se refere aos profissionais de saúde, estes também sofrem impacto aquando do acompanhamento de doentes em paliação, salientando a dificuldade em lidarem com a ansiedade e depressão dos doentes e famílias. Apesar da experiência e preparação técnica e teórica que possam ter, por também serem homens e mulheres com a sua vulnerabilidade, e por serem submetidos ao contacto permanente com situações de cuidado difícil, sofrem grande desgaste (e até sofrimento) físico e psicossocial.

Cuidados Paliativos − quem os presta?

“Serviços de saúde − Família − Sociedade”

Uma vez que indivíduo doente deverá ser encarado como um todo bio-psico-social, as necessidades contempladas na paliação tornam-se amplas – desde o nível clínico, afectivo, espiritual, social, até ao económico e financeiro, tudo deveria ser integrado e adequadamente correspondido. Para que tal ocorra, será fundamental o envolvimento de vários agentes ou sectores, não só os profissionais de saúde e famílias mas também os recursos da própria comunidade.

Em termos de serviços de saúde, a prestação de cuidados paliativos deverá ser feita por equipas multidisciplinares. Apesar de se considerar como mínimo essencial uma equipa constituída por médico, enfermeiro e assistente social, o ideal será a integração de outros profissionais de saúde, como: psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, profissionais das medicinas ditas alternativas, etc.

Particular destaque se dá à família, por tudo quanto já foi explicado. Quando existem e estão disponíveis, os familiares ajudam o doente a manter a sua identidade e laços afectivos, colaborem com os profissionais nos cuidados diários e dão o feed-back permanente quanto ao resultado dos serviços prestados. Constituem, ainda, a ponte ou elo entre o indivíduo doente e a comunidade – é fundamental que este nunca seja entendido como uma peça “fora do puzzle”!

Pensando no puzzle total, apela-se também à responsabilidade da sociedade para com os seus membros. A comunidade tem inúmeros recursos que podem ser de sobremaneira úteis e importantes da assistência aos doentes em sofrimento, como por exemplo as associações de voluntários, os movimentos de cidadania, as fundações e instituições de solidariedade.

Os voluntários deverão ser encarados como pessoas, desinteressadas e responsáveis, que se comprometem de acordo com as suas aptidões próprias e no seu tempo livre. O voluntário não substitui profissionais, antes complementa a sua acção, após prévia obtenção da qualificação necessária para o exercício de funções, essencial à garantia de cuidados seguros e de qualidade.

Implementação dos Cuidados Paliativos

Apesar de se verificar um progressivo desenvolvimento dos cuidados paliativos a nível internacional, e a própria Comunidade Europeia perspectivar este tipo de cuidados como um direito humano fundamental, o seu desenvolvimento em Portugal é ainda muito tímido. Desde Junho de 2004, o nosso país tem um Programa Nacional de Cuidados Paliativos e assume que esta é uma área altamente carenciada. Porém, a sua implementação ainda não é uma realidade.

Na região norte, o IPO do Porto é a instituição de maior antiguidade e experiência a este nível, com grande reconhecimento na excelência dos cuidados prestados. Espera-se que a implementação e prestação de cuidados paliativos a nível comunitário seja, nos próximos tempos, uma realidade no Concelho de Braga.

A aposta na prestação não hospitalar prende-se, essencialmente, com o facto de se saber que a 80% dos problemas, principalmente nos doentes com cancro em fase terminal, se resolverem com intervenções simples no domicílio, onde os doentes podem estar no conforto do seio familiar e até receberem estes cuidados pelos seus entes mais queridos. Do mesmo modo, e no que diz respeito ao local de falecimento, a maioria dos estudos revela que cerca de 75% dos doentes terminais preferia morrer em sua casa. É também sabido que deste modo as queixas e problemas dos doentes são melhor acompanhados e controlados, evitando tratamentos, exames e internamentos que causam mais sofrimento ao doente e representam mais custos para o sistema.

A pessoa com necessidades paliativas tem de ser encarada como cidadão de plenos direitos, pelo que os dirigentes e os vários profissionais da cadeia de prestação de cuidados têm o dever ético de zelar pelo acesso e exercício desses direitos, implementando os cuidados paliativos e garantindo as boas práticas.

1 Autor: Ana Catarina Meireles

Catarina Meireles © Portal de Saúde Pública, 2008