Gripe Pandémica — Manual

Introdução

As pandemias de gripe são resultado do aparecimento de novas estirpes de vírus, em relação às quais a população tem pouca ou nenhuma imunidade. Os conhecimentos actuais sobre as pandemias de gripe alicerçam-se na experiência passada das três grandes pandemias que ocorreram no século XX. A primeira foi a mais devastadora, com 20-40 milhões de mortes estimadas em todo o mundo – número superior ao de vidas perdidas durante a primeira guerra mundial. Como a história tem demonstrado, a gripe pandémica tem características diferentes da gripe comum (ou sazonal).  Por exemplo, enquanto que a gripe comum ocorre com uma periodicidade relativamente regular, sendo possível prever a estirpe predominante e efectuar a vacinação prévia da população, já a gripe pandémica pode ocorrer em qualquer momento, sendo causada por novos vírus e não permitindo a preparação atempada de vacinas. Enquanto que a gripe comum atinge sobretudo pessoas idosas e grupos vulneráveis da população, já a gripe pandémica pode afectar todas as pessoas, independentemente do grupo etário. Estas diferenças influenciam sobremaneira a estratégia de resposta à gripe pandémica.

A vacinação é a principal estratégia preventiva da população contra a gripe. Contudo, durante a fase inicial de uma pandemia de gripe é pouco provável que possa existir uma vacina anti-gripal, uma vez que o início da sua produção só será viável após a identificação do vírus responsável. Assim, os medicamentos anti-virais constituem a estratégia de eleição no controlo de uma pandemia de gripe nas fases iniciais, permitindo atenuar a gravidade da infecção. Porém, é impossível determinar a eficácia destes medicamentos até que o vírus entre em circulação, bem como avaliar a sua eventual resistência aos medicamentos disponíveis. Os medicamentos anti-virais são caros e o seu período de validade é inferior a cinco anos.

Porque nos devemos preocupar com a panzootia de gripe em aves? A evidência sugere que os vírus das pandemias mais recentes em humanos tiveram a sua génese em pássaros. Durante os últimos anos, o mundo confrontou-se com diversos tipos de ameaças com potencial pandémico – sobretudo os decorrentes dos surtos de gripe em aves. Muitos especialistas pensam que o surto de Hong Kong em 1997 – devido a uma estirpe altamente patogénica do vírus da gripe das aves, o vírus influenza A(H5N1) – podia ter originado uma grande pandemia, caso não fossem logo tomadas as medidas drásticas de eliminação de mais de 1,5 milhões de galináceos. Durante este surto em Hong Kong, iniciado na primavera de 1997, foram infectadas 18 pessoas, seis das quais morreram. O surto actual devido ao vírus influenza A(H5N1) tem atingido aves domésticas em muitos países asiáticos e, até 30 de Dezembro de 2005, já infectou 142 pessoas, 74 das quais morreram (letalidade: 52%).

Apesar de ser pouco provável que uma pandemia de gripe possa ter origem em Portugal, nenhum país está fora de risco. Quando se originar o vírus pandémico, nenhum país terá capacidade para impedir a sua disseminação global; mas se todos estiverem preparados para esta eventualidade, poderão reduzir muito o seu impacto. Ninguém pode aventar ou predizer com alguma certeza qual será a gravidade da próxima pandemia, quais serão os grupos populacionais de maior risco, ou quantas pessoas serão afectadas. Apesar das pandemias anteriores terem variado muito em magnitude e gravidade da doença, pode-se assumir que, actualmente, a ocorrência de uma pandemia de gripe em humanos terá maior magnitude que a pior das epidemias de gripe sazonal (gripe comum). Os especialistas na matéria prevêem a ocorrência de um elevado número de mortes em todo o mundo – entre 2 e 150 milhões.

Considerando os cenários elaborados pelo Observatório Nacional de Saúde (ONSA) em 2005, em Portugal a pandemia de gripe pode atingir mais de um quarto da população (entre 2,5 e 3,6 milhões de casos), e originar mais de 11.000 mortes [1]. As incertezas relativamente ao modo como a pandemia atingirá Portugal, ou qualquer outro país, levantam questões muito sérias e são um desafio incomensurável aos esforços e estratégias de prevenção delineadas a nível nacional para atenuar o seu impacto. Assim, o plano de contingência português é necessariamente um documento flexível e dinâmico, adaptável ao evoluir da situação a nível mundial e nacional.

A única certeza que existe é que o vírus pandémico será de disseminação fácil e rápida. Durante as pandemias de 1957 e 1968, entre o seu aparecimento no Sudeste Asiático e a sua disseminação pela Europa e América do Norte, os vírus demoraram cerca de três meses. Em 2003, a disseminação intercontinental da Síndrome Respiratória Aguda Severa foi ainda mais rápida; quatro meses após o alerta global tinham sido infectadas mais de 8.000 pessoas em 30 países dos seis continentes, das quais 900 morreram. A proliferação das viagens aéreas internacionais será indubitavelmente um dos factores que contribuirá para a rápida disseminação do vírus pandémico por todo o mundo. Com a experiência acumulada, não é difícil concluir que o planeamento de quaisquer intervenções será demasiado tardio se ocorrer somente após a identificação do vírus causador da pandemia e o conhecimento da ocorrência de casos de doença num qualquer país.

Nada melhor que relembrar o velho adágio popular “antes prevenir que remediar”, e atempadamente “lançar mãos à obra” para fazer face a um risco potencial para a saúde pública global. Embora não seja possível prever a data de aparecimento e o impacto de outra pandemia gripal, a preparação para a sua eventual ocorrência é um aspecto primordial para reduzir o seu impacto. Mesmo com um planeamento exaustivo, uma pandemia de gripe pode ser catastrófica.

“O síndroma originado pelos vírus influenza foi referido pela primeira vez por Hipócrates, no ano 412 A.C., e a primeira descrição completa de uma pandemia gripal data de 1580.  Desde então ocorreram mais de 30 pandemias causadas por diferentes tipos de vírus influenza.

No século XX houve três grandes pandemias, todas originadas e transmitidas por animais (suínos em 1918 e aves em 1957 e 1968).  A mais devastadora foi a "gripe espanhola", devida ao vírus Influenzae A(H1N1), que matou entre 30 e 40 milhões de pessoas entre 1918 e 1920.  As pandemias de 1957 (gripe asiática) e de 1968 (gripe de Hong Kong) mataram mais de 4 milhões de pessoas, sobretudo crianças e idosos; a primeira foi devida ao subtipo A(H2N2) e a segunda aos subtipos A(H3N2) e A(H1N1).

Em Maio de 1997, o vírus Influenzae A(H5N1) foi isolado pela primeira vez em humanos, numa criança de Hong Kong.  Antes deste acontecimento, só se tinha conhecimento da ocorrência do vírus Influenzae A(H5N1) em diferentes espécies de aves (daqui a designação de "gripe das aves"), incluindo galinhas e patos/gansos, sabendo-se ainda que a maior parte das galinhas infectadas morriam num curto espaço de tempo, e que patos/gansos eram os principais reservatórios do vírus.  Durante o surto de Hong Kong, iniciado na primavera de 1997, foram diagnosticados 18 casos de infecção pelo H5N1, seis dos quais foram fatais (letalidade: 33%). O subtipo H5N1 foi isolado pela primeira vez em estorninhos, em 1961, na África do Sul.” [2]

 

 


[1] Fonte: Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Gripe: cenários preliminares para uma eventual pandemia, Observatório Nacional de Saúde, INSA, Relatório de Junho de 2005

Fernando Costa Silva © Portal de Saúde Pública, 2006